domingo, 28 de novembro de 2010

O Imortal (Jorge Luis Borges)

Solomon saith: “There is no new thing upon the
earth”. So that as Plato had an imagination,
“that all knowledge was but remembrance”; so
Solomon giveth his sentence, “that all novelty is
but oblivion”.

FRANCIS BACON: Essays LVIII.
Em Londres, em princípios do mês de junho de 1929, o antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu à princesa de Lucinge os seis volumes em quarto-menor (1715-172O) da Ilíada de Pope. A princesa adquiriu-os; ao recebê-los, trocou algumas palavras com ele. Era; diz-nos, um homem muito magro e terroso, de olhos apagados e barba cinzenta, de traços singularmente vagos. Empregava com fluidez e ignorância as diversas línguas; em poucos minutos, passou do francês ao inglês e do inglês a uma conjunção enigmática de espanhol de Salonica e de português de Macau. Em outubro, a princesa ouviu de um passageiro do Zeus que Cartaphilus havia morrido no mar, ao regressar a Esmirna, e que o haviam enterrado na ilha de Ios. No último tomo da Ilíada encontrou este manuscrito.
O original está escrito em inglês e é abundante em latinismos. A versão que oferecemos é literal.
I
Que eu me lembre, meus trabalhos começaram em um jardim de Tebas Hekatómpylos, quando Diocleciano era imperador. Militei (sem glória) nas recentes guerras egípcias, sendo tribuno de uma legião que esteve aquartelada em Berenice, diante do mar Vermelho: a febre e a magia consumiram muitos homens que cobiçavam com magnanimidade o aço. Os mauritanos foram vencidos; a terra, antes ocupada pelas cidades rebeldes, foi dedicada eternamente aos deuses plutônicos; Alexandria, debelada, implorou em vão a misericórdia de César; antes de um ano, as legiões alcançaram o triunfo, mas eu mal consegui divisar a face de Marte. Essa privação me doeu e foi talvez a causa de eu ter me lançado, por temerosos e extensos desertos, a descobrir a secreta Cidade dos Imortais.
Meus trabalhos, como disse, começaram em um jardim de Tebas. Toda essa noite não dormi, pois algo estava combatendo em meu coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro vencido e ensangüentado vinha do oriente. A uns passos de mim, caiu do cavalo. Com tênue voz insaciável, perguntou-me em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade. Respondi-lhe que era o Egito, que as chuvas alimentam. “Outro é o rio que persigo”, replicou com tristeza, “o rio secreto que purifica da morte os homens”. Escuro sangue brotava de seu peito. Disse-me que sua pátria era uma montanha que está do outro lado do Ganges e que nessa montanha se falava que, se alguém caminhasse até o ocidente, onde o mundo se acaba, chegaria ao rio cujas águas dão a imortalidade. Acrescentou que na margem ulterior se ergue a Cidade dos Imortais, rica em baluartes e anfiteatros e templos. Antes do amanhecer, morreu, mas determinei descobrir a cidade e seu rio. Interrogados pelo verdugo, alguns prisioneiros mauritanos confirmaram a informação do viajante; alguém lembrou a planície elísia, no fim da terra, onde a vida dos homens é perdurável; outro, os cumes onde nasce o Pactolo, cujos moradores vivem um século. Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que prolongar a vida do homem era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes. Ignoro se acreditei alguma vez na Cidade dos Imortais: penso que então me bastou o trabalho de procurá-la. Flávio, procônsul de Getúlia, entregou-me duzentos soldados para a tarefa. Também recrutei mercenários, que se disseram conhecedores dos caminhos e foram os primeiros a desertar.
Os fatos posteriores deformaram até o inextricável a lembrança de nossas primeiras jornadas. Partimos de Arsinoe e entramos no abrasado deserto. Atravessamos o país dos trogloditas, que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra; o dos garamantes da Líbia, que têm as mulheres em comum e se nutrem de leões; o da tribo dos augilas, que só veneram o Tártaro. Fatigamos outros desertos, onde é negra a areia, onde o viajante deve roubar as horas da noite, pois o fervor do dia é intolerável. De longe divisei a montanha que deu nome ao Oceano: em suas ladeiras cresce o eufórbio, que anula os venenos; no cume, vivem os sátiros, nação de homens cruéis e rústicos, inclinados à luxúria. Que essas regiões bárbaras, onde a terra é mãe de monstros, pudessem abrigar em seu seio uma cidade famosa, a todos nos pareceu inconcebível. Prosseguimos na marcha, pois teria sido uma desonra retroceder. Alguns temerários dormiram com o rosto exposto à
lua; a febre os queimou; na água corrompida das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Então, começaram as deserções; muito pouco depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei no exercício da severidade. Procedi corretamente, mas um centurião me advertiu que os sediciosos (ávidos por vingar a crucificação de um deles) tramavam minha morte. Fugi do acampamento, com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto, perdi-os entre os redemoinhos de areia e a vasta noite. Uma flecha cretense me lacerou. Por vários dias, errei sem encontrar água, ou por um só enorme dia multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. Na aurora, a distância encrespou-se de pirâmides e de torres. Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
II
Ao desenredar-me por fim desse pesadelo, vi-me atirado e manietado a um oblongo nicho de pedra, não maior que uma sepultura comum, superficialmente escavado no áspero
declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.
A urgência da sede me fez temerário. Considerei que estava a uns trinta pés da areia: de olhos fechados, com as mãos atadas às costas, atirei-me montanha abaixo. Afundei o rosto ensangüentado na água escura. Bebi como abeberam os animais. Antes de perder-me outra vez no sonho e nos delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: “Os ricos teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo…”
Não sei quantos dias e noites rodopiaram sobre mim. Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, despido na ignorada areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu aziago destino. Os trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver ou a morrer. Em vão, roguei-lhes que me dessem a morte. Um dia, com o fio de um pedernal, parti minhas ligaduras. Em outro, levantei-me e pude mendigar ou roubar – eu, Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma – minha primeira detestada ração de carne de serpente.
A ânsia de ver os Imortais, de tocar a sobre-humana Cidade, quase me impedia de dormir. Como se penetrassem em meu propósito, não dormiam também os trogloditas: a princípio, inferi que me vigiavam; depois, que se haviam contagiado por minha inquietude, como poderiam contagiar-se os cães. Para afastar-me da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o cair da tarde, quando todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente, sem vê-lo. Orei em voz alta, menos para suplicar o favor divino que para intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o arroio que os bancos de areia entorpecem e dirigi-me à Cidade. Confusamente, seguiram-me dois ou três homens. Eram (como os demais dessa linhagem) de minguada estatura; não inspiravam temor, mas repulsa. Tive de contornar algumas ribanceiras irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela pedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu a supusera próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a negra sombra de seus muros. Deteve-me uma espécie de horror sagrado. Tão abominados pelo homem são a novidade e o deserto que me alegrei que um dos trogloditas me tivesse acompanhado até o fim. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que rebrilhasse o dia.
Disse que a Cidade estava construída sobre uma meseta de pedra. Essa meseta, comparável a um alcantilado, não era menos árdua que os muros. Em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta. A força do dia fez com que me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que se abismava até a treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão; oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito; outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada. Habituei-me com horror a esse duvidoso mundo; considerei inacreditável que pudesse existir outra coisa além de porões providos de nove portas e além de longos porões que se bifurcavam. Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que certa vez confundi, na mesma nostalgia, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre as videiras.
No fundo de um corredor, um não previsto muro me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre mim. Ergui os ofuscados olhos: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a parecer-me de púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas do granito e do mármore. Foi-me assim concedido ascender da cega região de negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.
Emergi numa espécie de pequena praça, ou melhor, de pátio. Circundava-o um só edifício de forma irregular e altura variável; a esse edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer outro traço desse monumento inacreditável, causou-me admiração o antiquíssimo de sua construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à terra. Essa evidente antigüidade (embora, de algum modo, terrível para os olhos) pareceu-me adequada ao trabalho de operários imortais. Cautelosamente a princípio, com indiferença depois, com desespero por fim, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averigüei que eram inconstantes a extensão e a altura dos degraus, fato que me fez compreender a singular fadiga que me infundiram.) “Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiramente. Explorei os inabitados recintos e corrigi: “Os deuses que o edificaram morreram”. Notei suas peculiaridades e disse: “Os deuses que o edificaram estavam loucos”. Disse isso, bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais horror intelectual que medo sensível. A impressão de enorme antigüidade juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente insensato. Eu havia cruzado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me atemorizou e repugnou. Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim. No palácio que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao costado de um muro monumental, morriam sem chegar a nenhuma parte, no fim de dois ou três giros, na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que desatinaram minhas noites. “Esta Cidade”, pensei, “é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz”. Não quero descrevê-la; um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximadas.
Não recordo as etapas de meu regresso, entre os poeirentos e úmidos hipogeus. Sei apenas que não me abandonava o temor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais. Nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi talvez voluntário; talvez as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.
III
Os que tiverem lido com atenção o relato de meus trabalhos lembrarão que um homem da tribo me seguiu, como um cão poderia seguir-me, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão, encontrei-o na boca da caverna. Estava atirado na areia, onde desenhava grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam. A princípio, pensei que se tratava de alguma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além disso, nenhuma das formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de serem simbólicas. O homem as traçava, olhava para elas e as corrigia. Subitamente, como se esse jogo o enfastiasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me, não pareceu reconhecer-me. Entretanto, tão grande era o alívio que me inundava (ou tão grande e medrosa minha solidão) que me pus a pensar que esse rudimentar troglodita, que me olhava do chão da caverna, estivera me esperando. O sol escaldava a planície; quando empreendemos o regresso à aldeia, sob as primeiras estrelas, a areia era ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; essa noite concebi o propósito de ensiná-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas palavras. O cachorro e o cavalo (refleti) são capazes do primeiro; muitas aves, como o rouxinol dos Césares, do último. Por muito grosseiro que fosse o entendimento de um homem, sempre seria superior ao de irracionais.
A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe. A alguns passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma pequena e arruinada esfinge de lava, deixava que sobre si girassem os céus, desde o crepúsculo do dia até o da noite. Julguei impossível que não se apercebesse de meu propósito. Lembrei-me de que se diz entre os etíopes que os macacos deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a suspicácia ou a temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras ainda mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava de outra maneira e construía com elas outros objetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã. Choveu, com lentidão poderosa.
As noites do deserto podem ser frias, mas aquela tinha sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra um peixe de ouro) vinha resgatar-me; sobre a vermelha areia e a negra pedra eu o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o rumor atarefado da chuva me despertaram. Corri para recebê-la, despido. Declinava a noite; sob as nuvens amarelas, a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.
Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras: “Argos, cão de Ulisses”. E depois, também sem olhar-me: “Este cão atirado no esterco”.
Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.
“Muito pouco”, disse. “Menos que o rapsodo mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei.”
IV
Tudo me foi dilucidado naquele dia. Os trogloditas eram os Imortais; o riacho de águas arenosas, o Rio que o cavaleiro procurava. Quanto à cidade cujo renome se havia espalhado até o Ganges, nove séculos fazia que os Imortais a haviam assolado. Com as relíquias de sua ruína ergueram, no mesmo lugar, a desatinada cidade que eu percorri: espécie de paródia ou reverso e também templo dos deuses irracionais que manejam o mundo e dos quais nada sabemos, salvo que não se parecem com o homem. Aquela fundação foi o último símbolo a que condescenderam os Imortais; marca uma etapa em que, julgando vã qualquer obra, determinaram viver no pensamento, na pura especulação. Erigiram a obra, esqueceram-na e foram morar nas covas. Absortos, quase não percebiam o mundo físico.
Homero narrou essas coisas como quem fala com uma criança. Também me falou de sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu, movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o mar, nem comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Viveu um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação da outra. Isto não nos deve surpreender; diz-se que, depois de cantar a guerra de Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criara o cosmos e em seguida o caos.
Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Industão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e gera a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada num exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar, os números pares e os números ímpares tendem ao equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e talvez o rústico poema de Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Éclogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.
O conceito do mundo como sistema de precisas compensações influiu enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à piedade. Mencionei as antigas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem; um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a sede o abrasava; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos. Tampouco interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de restos de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um estímulo extraordinário nos restituía ao mundo físico. Por exemplo, naquela manhã, o velho prazer elementar da chuva. Esses lapsos eram raríssimos; todos os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro se aninhava em seu peito.
Entre os corolários da doutrina de que não existe coisa que não esteja compensada por outra, há um de muito pouca importância teórica, mas que nos induziu, em fins ou em princípios do século X, a dispersar-nos pela face da terra. Cabe nestas palavras: “Existe um rio cujas águas dão a imortalidade; em alguma região haverá outro rio cujas águas a apaguem”. O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, tendo bebido de todos. Propusemo-nos descobrir esse rio.
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas portas de Tânger; creio que não nos dissemos adeus.
V
Percorri novos reinos, novos impérios. No outono de 1O66, militei na ponte de Stamford, já não lembro se nas fileiras de Harold, que não tardou em encontrar seu destino, ou se nas daquele infausto Harald Hardrada, que conquistou seis pés de terra inglesa, ou um pouco mais. No sétimo século da Hégira, no arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em um idioma que esqueci, em um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a história da Cidade de Bronze. Num pátio do cárcere de Samarcanda joguei muitíssimo o xadrez. Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia. Em 1638, estive em Kolozsvar e depois em Leipzig. Em Aberdeen, em 1714, assinei os seis volumes da Ilíada de Pope; sei que os freqüentei com deleite. Por volta de 1729, discuti a origem desse poema com um professor de retórica, chamado, creio, Giambattista; suas razões me pareceram irrefutáveis. No dia 4 de outubro de 1921, o Patna, que me conduzia a Bombaim, teve que fundear em um porto da costa eritréia.1 Desci; lembrei-me de outras manhãs muito antigas, também diante do mar Vermelho, quando era tribuno de Roma e a febre e a magia e a inação consumiam os soldados. Nos arredores, vi um caudal de água clara; provei-a, levado pelo costume. Ao subir à margem, uma árvore espinhosa me lacerou o dorso da mão. A inusitada dor me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz, contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal, repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos os homens. Nessa noite, dormi até o amanhecer.
…Revisei estas páginas, passado um ano. Parece-me que elas se ajustam à verdade, mas nos primeiros capítulos, e ainda em certos parágrafos dos outros, creio perceber algo falso. Isso é efeito, talvez, do abuso de traços circunstanciais, procedimento que aprendi com os poetas e que tudo contamina de falsidade, já que esses traços podem ser freqüentes nos fatos, mas não na memória deles… Creio, contudo, ter descoberto uma razão mais íntima. Vou escrevê-la; não importa que me julguem fantástico.
A história que narrei parece irreal porque nela se mesclam os sucessos de dois homens diferentes. No primeiro capítulo, o cavaleiro quer saber o nome do rio que banha as muralhas de Tebas; Flamínio Rufo, que antes dera à cidade o epíteto de Hekatómpylos, diz que o rio é o Egito; nenhuma dessas locuções é adequada a ele, mas a Homero, que faz menção expressa, na Ilíada, a Tebas Hekatómpylos, e na Odisséia, pela boca de Proteu e de Ulisses, diz invariavelmente Egito por Nilo. No capítulo segundo, o romano, ao beber a água imortal, pronuncia algumas palavras em grego; essas palavras são homéricas e podem ser encontradas no fim do famoso catálogo das naves. Depois, no vertiginoso palácio, fala de “reprovação que era quase remorso”; essas palavras correspondem a Homero, que havia projetado esse horror. Tais anomalias me inquietaram; outras, de ordem estética, permitiram-me descobrir a verdade. O último capítulo as inclui; aí está escrito que militei na ponte de Stamford, que transcrevi, em Bulaq, as viagens de Simbad,
o Marinheiro, e que assinei, em Aberdeen, a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: “Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia”. Nenhum desses testemunhos é falso; significativo é o fato de havê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas logo se percebe que o narrador não repara no bélico e sim no destino dos homens. Os que seguem são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; fiz isso porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, muitos séculos depois, em um reino boreal e em um idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à frase que reúne o nome de Bikanir, vê-se que foi construída por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de mostrar vocábulos esplêndidos.2
Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da lembrança; só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as que alguma vez me representaram com as que foram símbolos do destino de quem me acompanhou, por tantos séculos. Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve, serei todos: estarei morto.
Pós-escrito de 195O. Entre os comentários que a publicação anterior despertou, o mais curioso, já que não o mais urbano, biblicamente se intitula A Coat of Many Colours (Manchester,1948 ) e é obra da pena tenacíssima do doutor Nahum Cordovero. Compreende umas cem páginas. Fala dos centões gregos, dos centões da baixa latinidade, de Ben Jonson, que definiu seus contemporâneos com trechos de Sêneca, do Virgilius Evangelizans de Alexander Ross, dos artifícios de George Moore e de Eliot e, finalmente, da “narração atribuída ao antiquário Joseph Cartaphilus”. Denuncia, no primeiro capítulo, breves interpolações de Plínio (Historia Naturalis, V, 8); no segundo, de Thomas de Quincey (Writings,111, 439); no terceiro, de uma epístola de Descartes ao embaixador Pierre Chanut; no quarto, de Bernard Shaw (Back to Methuselah, V). Infere dessas intrusões, ou furtos, que todo o documento é apócrifo.
No meu entender, a conclusão é inadmissível. “Quando se aproxima o fim”, escreveu Cartaphilus, “já não restam imagens da lembrança; só restam palavras”. Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.
1 Há uma rasura no manuscrito; talvez o nome do porto tenha sido apagado.
2 Ernesto Sábato sugere que o “Giambattista” que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano sustentava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.
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O Imortal (Jorge Luis Borges)
FONTE: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/08/19/o-imortal-jorge-luis-borges/

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A utopia possível na sociedade líquida



REVISTA CULT
Edição 138

O sociólogo afirma que é preciso acreditar no potencial humano
para que um outro mundo seja possível

03/08/2009 Dennis de Oliveira
Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante
Foto: Reprodução/Creative Commons

a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista.

Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de "modernidade líquida" para definir o presente, em vez do já batido termo "pós-modernidade", que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.

Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual;
o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.


CULT - Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?

Zygmunt Bauman - Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que "nós, seres humanos, podemos fazê-lo", crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.


CULT - Por que se fala tanto hoje de "fim das utopias"?

Bauman - Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o "equilíbrio natural". A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.
Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas "daninhas". É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.
CULT - O que isso significa para a humanidade de hoje?

Bauman - Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado.Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma "associação de caçadores", se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa. Foto: Reprodução/Creative Commons

Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de "individualização".

E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com "consciência ecológica" servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de "desregulamentação".

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"Para que a utopia renasça, é preciso a confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo"
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CULT - Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?

Bauman - É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo.

Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, "as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo". E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de "jardineiros", favorecem a caça e os caçadores da vez.

O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como "fantasia", "fantástico", "fictício", "impraticável", "irrealista", "pouco razoável" ou "irracional". Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.

Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria "morto". Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que "Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores".

Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.

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"A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo"
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CULT - Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?

Bauman - A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, "o Brasil é o único local com sol no inverno", neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado.

Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve "causar" na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.

O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando - e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas - abandonando-as, livrando-se delas -, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.

domingo, 4 de julho de 2010

Reflexão

por Deniza da Silva Souza


A educação engloba toda uma rede de saberes, fazeres e poderes. Varia de cultura, classe social, momento histórico...
Ela encontra seu eixo integrador na alma da criança, sem diversificações. Será?
A educação é exercida pelas gerações adultas sobre gerações que ainda não estão preparadas para viver em sociedade, objetivando desenvolver na criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política.
Se a educação é a arte de se utilizar conhecimentos, onde esta a magia? O sabor do gosto de aprender a aprender?Onde esta arte do conhecer, do conviver e, principalmente do fazer e ser?
Como transmitir uma arte onde os conhecimentos estão previamente articulados?
Com certeza, esta arte é muito difícil de ENSINAR, principalmente porque sempre que surge um “novo” método uma nova maneira de fazer arte na educação, muitos críticos se opõem logo a mudança, dizendo que vai ser difícil. Se fosse tão difícil assim, o livro deveria ser queimado. Não?
Desta forma, nossa educação reflete encontros e desencontros que nos levam a caminhos floridos, mas também a lugares muito desagradáveis, esses às vezes são representados por um livro e por palestras que permitirão aos alunos decorar todas as perguntas que provavelmente cairão no próximo exame.
O ideal de educação talvez fosse se todas essas idéias teóricas encontrassem explicações importantes dentro do currículo do aluno...Mas isso desencadearia a problemática do difícil, do impossível.
Então existe um ideal de educação? Qual é o seu?

Pedagoga, Psicopedagoga, pós graduanda de Supervisão Educacional/PORTAL, núcleo Guaíba 2010/

sábado, 3 de abril de 2010

José Saramago: “ESCREVO PARA DESASSOSSEGAR”


Acessado em abril de 2010 http://www.caleidoscopio.art.br/entrevista/literatura/josesaramago.html


Artur da Távola, meu grande amigo e incentivador. Agora é só Saudade... (9/5/2008)

Cada lançamento de um livro seu levanta expectativas. Não em vão estamos falando de um dos prêmios Nobel mais respeitados dos últimos anos. Sua última novela, A Caverna, fechou uma festejada trilogia iniciada com Ensaio Sobre a Cegueira, e continuada com Todos os Nomes, que questiona de forma filosófica a humanidade e sua desrazão. “Entramos na era da burocracia absoluta, caminhamos para a ignorância. O homem, cercado de informação, perplexo, perde sua capacidade de indignação, de racionalidade mínima”, disse o escritor.

A geração de Saramago, talvez a mais expressiva desde Eça de Queiróz, tem como principais representantes, além dele, Antonio Lobo Antunes, Cardoso Pires, Maria Gabriela Llansol e os poetas Al Berto e Herberto Helder. Nascido em 1922, numa aldeia chamada Azinhaga, no Alentejo português, a região sul do país onde se produzem azeitonas, cortiça e trigo, José Saramago nunca pensou em tornar-se escritor e só comprou seu primeiro livro aos 18 anos. Aos 25 escreveu e publicou a novela Terra do Pecado, voltando à literatura depois dos 40, com os versos de Poemas Possíveis, de 1966. Trabalhou como mecânico, desenhista, editor e jornalista do importante Diário de Notícias e, em 75, desempregado, resolveu não procurar emprego e sim escrever. Publicado em 40 idiomas, é autor de Levantando do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, entre outros.

É o meu terceiro encontro com o famoso escritor português. Havia entrevistado-o em 1997 e certa vez, cobrindo a abertura de uma exposição fotográfica do brasileiro Sebastião Salgado, no Partido Comunista Português, ele encontrava-se presente. Conheço pouco da sua criação literária, não é um escritor que me interesse o suficiente. Desta vez, a entrevista foi marcada num café em um edifício de Restauradores, pleno centro de Lisboa. Da alta varanda vê-se o imponente Castelo de São Jorge, as colinas melancólicas, o rio Tejo e pombas gordas e barulhentas. Saramago, calvo, de óculos, sentado numa cadeira ao lado da bonita esposa, a espanhola Pilar del Río, recebe o sol inclemente nas costas. Sólido, elegante e cordial assina um exemplar de A Caverna para um jovem garçom, que olha o escritor com admiração. Ele prefere viver na vulcânica ilha de Lanzarote, seu refúgio cercado de azul atlântico no arquipélago das Canárias. É onde escreve duas páginas por dia de sua literatura. Mesmo assim, pelo menos uma vez ao mês visita Lisboa. Não existem palavras vazias para o autor de Jangada de Pedra. Suas mãos se movem expressivas, as sobrancelhas sobem e descem, e o olhar é melancólico como os fados de Amália Rodrigues. A entrevista ocorreu numa atmosfera cálida. Nem mesmo o seu sorriso irônico provocou qualquer contratempo.
(AJ)

Antonio Júnior - O senhor tem uma relação difícil com Portugal, inclusive vive em outro país. Mesmo assim os portugueses insistem em colocá-lo como representante oficial deste país.

José Saramago - Eu não posso e nem quero representar Portugal. Nada do que penso transmite tal idéia. Quanto a viver aqui, por que tenho que o fazê-lo depois da infame proibição de O Evangelho Segundo Jesus Cristo? Fiquei indignado e triste e as circunstâncias me levaram a viver em Lanzarote. Além do mais, Jorge de Sena vivia no Brasil e depois nos Estados Unidos, Eduardo Lourenço vive na França e muitos outros escritores e poetas viveram ou vivem fora daqui. O importante é que pago os meus impostos. Nunca houve uma ruptura com o meu país. Não sou um exilado como dizem os meios de comunicação, que chegaram a me chamar do Salman Rushdie português.

AJ - Volta sempre a sua pequena aldeia no Alentejo?

JS - Estive lá um dia desses. Mas acredito que sou filho do tempo em que vivo e não do lugar onde nasci. Digo porque, a vila onde nasci já não é a mesma depois de 70 anos. Mudou completamente a paisagem. Haviam extensões incríveis de oliveiras que foram arrancadas. Quando chego ali, me encontro em outro mundo, que não é o mundo da memória.

AJ - O senhor vive numa ilha tranqüila. Não se sente distante do mundo moderno?

JS - Não vive distante do mundo. Estou sempre viajando, venho a Portugal todos os meses. E escrevo novelas que provam que tenho um certo interesse e algumas idéias sobre o mundo e sobre os seres humanos.

AJ - O senhor acredita num mundo melhor?

JS - Acredito que temos que fazer algo por um mundo mais justo, buscar soluções para os problemas. Efetivamente, não adianta a crença num mundo melhor se continuarmos de braços cruzados, apenas acreditando em conceitos como esperança e utopia. É preciso indignarmo-nos. Ou melhor, deveríamos refletir seriamente sobre o que está acontecendo no mundo, na economia, na ecologia, na desigualdade, na indiferença, no racismo.

AJ - Por que o senhor evita qualificar-se como pessimista?

JS - Porque eu não sou pessimista, apenas observo a realidade. É só olhar o mundo e ver o que está acontecendo, ver o desespero de milhões de pessoas que vivem miseravelmente. Aparentemente existe o protótipo do mundo feliz, porém feliz para poucos. O mundo é um pesadelo e poderia não sê-lo, porque existem muitas formas de contornar essa situação.

AJ - Mas a sua literatura é considerada pessimista.

JS - Não gosto de discutir esse conceito, não leva a nada. Não existe o pessimismo puro, da mesma maneira que não existe o otimismo puro. O que posso dizer é que não sou pessimista, apenas tenho uma visão do mundo bastante pessimista.

AJ - Crer que a literatura pode ajudar a humanidade?

JS - A literatura pode muito pouco. Não vamos embarcar em ilusões, no otimismo. Ajudar a humanidade? Não sei se a humanidade quer ser ajudada. Mas a missão do escritor, se existe alguma, é não calar-se, que deveria ser a missão de todas as consciências.

AJ - A sua criação não é fácil. Como acredita que as pessoas mais simples intelectualmente podem captá-la?

JS - A idéia não é procurar escrever pensando que todo mundo vai compreender sua literatura. O problema não está em levar os livros para a gente mais simples; está em que cada um de nós faça da melhor maneira possível aquilo que sabemos. Seria um erro fazê-lo pior, podendo fazê-lo melhor. A criação de um autor deve estar ao alcance de todas as pessoas, para que elas procurem e possam entendê-la. O caminho é a cultura ao alcance de todos. Sei que há livros meus que muita gente não entende, e tenho que declarar, muito humildemente, que há livros que não entendo, que também não estão ao meu alcance.

AJ - Como o senhor definiria a novela, talvez o gênero literário que mais trabalhe?

JS - Faço novela porque não aprendi a escrever ensaios. Eu não tenho imaginação. A novela, como eu a vejo, mudou muito, não é mais como as magníficas novelas do passado que contavam histórias sobre a vida das pessoas. Vejo a novela não como um gênero literário, mas um espaço criativo onde devem estar o ensaio, o drama, a filosofia, a ciência. É preciso transformar a novela num depósito da sabedoria humana.

AJ - Mas este é um conceito antigo.

JS - Talvez, mas que teve a sua meta desviada. Nas minhas novelas, tenho a história que quero contar, limitada ao essencial. Logo, sem perceber, entro com uma reflexão ensaísta ou filosófica, deixando o narrador ou os personagens de lado por instantes. E o autor fala sem estar previsto inicialmente.

AJ - Esse autor que fala confunde-se com o narrador?

JS - Eu não acredito no narrador, ele não existe, é uma invenção. O que está no texto é um senhor que se chama autor e nada mais, muitas vezes fingindo que é o narrador.

AJ - Camilo José Cela declarou numa entrevista que, ao ganhar o Nobel, é preciso muita força e saúde para não esgotar-se completamente.

JS - É verdade. Fiquei muito cansado. Não fazia outra coisa senão viajar. Foram muitos congressos, entrevistas, lançamentos, apresentações, doutoramentos honoris causa. O próprio Cela já havia me avisado que o ano imediato ao prêmio é perdido. Mas não me queixo.

AJ - A cultura se move muito por modas. Quando pensamos que os brasileiros estão interessados na literatura portuguesa, como é o caso da sua obra e da de Lobo Antunes, não estaremos dando importância a algo passageiro?

JS - As modas não são negativas. Sem moda seguiríamos como antes. É bom que surja algo diferente, mesmo efêmero. Algo sempre permanece. Inclusive falando de autores que estão na moda. Se com a moda da literatura portuguesa, que você disse que existe no Brasil e eu não creio muito, passamos a vender um pouco mais, já é bastante interessante.

AJ - Saramago não é o seu verdadeiro sobrenome?

JS - Eu fui o primeiro Saramago da família, porque o empregado do registro civil fez uma pequena confusão. Sou um Souza. Saramago é uma planta que nos tempos da minha infância, e antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crises, digamos, comiam saramagos. Gosto do meu sobrenome, não queria ser chamado de José de Souza.

AJ - Por que escreve dia após dia?

JS - Eu vivo desassossegado, escrevo para desassossegar. Não desejo abandonar-me a comodidade existencial. Mas o que procuro saber com a minha escrita, no fundo, é essa coisa tão simples e que não tem resposta: quem somos? Porém, quando esgotar o que tenho que dizer, terei a sensatez de não escrever mais.



Antonio Júnior (de Lisboa)
site: www.blocosonline.com.br

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