quinta-feira, 28 de maio de 2009

Paulo Freire em poesia*


Escolhi a sombra desta árvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. Por isto, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens. Suarei meu corpo que o Sol queimará; minhas mãos ficarão calejadas; meus pés aprenderão o mistério dos caminhos; meus ouvidos ouvirão mais; meus olhos verão o que antes não viam, enquanto esperarei por ti. Não te esperarei na pura espera porque meu tempo de espera é um tempo de que fazer. Desconfiarei daqueles que virão dizer-me em voz baixa e precavidos: é perigoso agir, é perigoso falar, é perigoso andar, é perigoso esperar, na forma em que esperas porque esses recusam a alegria de tua chegada. Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me com palavras fáceis, que já chegaste, porque esses, ao anunciar-te ingenuamente, antes te denunciam. Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera (FREIRE, 2000-b, p.5).
* Poesia escrita no exílio, em Gênova, em março de 1971, contida na obra Pedagogia da Indignação.

sábado, 16 de maio de 2009

Quis ser como outras mulheres

de Rosane O.D.Zimmer*

Dia desses quis mudar.
Quis ser como outras mulheres...
Mulheres que venho aprendendo a admirar.

Quis ser como outras mulheres, como Hipácia de Alexandria
para ser mulher inteligente, grande cientista.
Mulher de corpo e de mente poderosos.
Como Hipácia de Alexandria, queria ser filha educada por Theon para tornar-me um ser humano mais perfeito,
conhecer a geometria, astronomia, filosofia e matemática,
desenvolver estudos, inventar instrumentos,
resolver problemas.
Ser diretora da Academia.

Quis ser como Hipácia de Alexandria
para ser mulher inteligente, grande cientista. Mulher de corpo e de mente poderosos.
Hipácia morreu muito cedo. Em nome de Cirilo, o Doutor da Igreja, foi cruelmente torturada, esquartejada por conchas e cacos de cerâmica, foi queimada.
Mas não quis ser como algumas Mulheres de Atenas, do Chico,que vivem para seu maridos, que não choram, se ajoelham.
Nem com algumas de Bangladesh que recebem ácido no rosto como punição à rejeição de investidas sexuais, a casamentos arranjados.


Quis ser como outras mulheres, como Leila Diniz
para quebrar a cara da repressão, para escandalizar a sociedade hipócrita.
Mulher para chocar o Brasil maltratado pela política obscena.
Mulher jovem, uma musa, com corpo para transar de manhã, de tarde e de noite.
Como Leila Diniz, queria ser diva da esquerda radical, causar furor em entrevistas
e romper com os tabus da mudança, dizer palavrão,
estrelar Tem banana na banda.
Ser a grávida do ano no saudoso programa do Chacrinha, sem vergonha alguma.

Quis ser como Leila Diniz
para quebrar a cara da repressão, para escandalizar a sociedade hipócrita.
Mulher para chocar o Brasil maltratado pela política obscena.

Leila morreu muito cedo.
Foi invejada, criticada, malvista, foi vulgar para
homens e mulheres de sua época.
Adormeceu no vôo JAL471 com 27 anos, junto de diário.

Mas não quis ser como aquela menina Osama, na obra de Barmak, ninfeta que mente aos talibãs, sentenciada a viver ao lado de outras três esposas do velho Mulá.
Nem como algumas mulheres da Índia,
viúvas, incluídas no ritual de cremação dos maridos.
Como
Quis ser como outras mulheres, como Maria Bonita
para ser a primeira cangaceira, ser mulher de meu Lampião,
para viver na caatinga, na mata branca, para amar, acordar e fazer café.
Mulher bonita, baixa, cheinha, de cabelos e olhos escuros, de dentes bonitos.
Como Maria Bonita, queria ser sertaneja, brava, fiel ao meu bandoleiro errante e nascer mulher em dia de mulher.
Ser a María bonita, Maria del alma, de Caetano, para así entregarte toda mi vida.

Quis ser como outras mulheres, como Maria Bonita
para ser a primeira cangaceira, ser mulher de meu Lampião,
para viver na caatinga, na mata branca, para amar, acordar e fazer café.
Mulher bonita, baixa, cheinha, de cabelos e olhos escuros, de dentes bonitos.

Maria morreu muito cedo.
Viveu o primeiro casamento infeliz, fugia para a casa dos pais. Teve abortos, viveu oito anos à margem, revoltou-se com a miséria, com a exploração dos coronéis.
Foi degolada viva, em Angicos, pela polícia armada oficial.

Mas não quis ser como algumas chinesas que mesmo depois do infanticídio feminino seguem exploradas e desprezadas social e culturalmente.
Nem como algumas mulheres asiáticas ou africanas adúlteras,
apedrejadas, com pena de morte, como Safiya Hussaini e Amina Kurami

Quis ser outras tantas mulheres, como as
mulheres de muitas histórias do mundo.
Mulheres que não apenas nascem, mas se tornam, como dizia Beauvoir.

Quisera poder esquecer que essas mesmas mulheres sofreram e outras continuam a sofrer tantos males. Males originários da desigualdade, da discriminação. Vitimadas pela violência doméstica, pelo abuso sexual são agredidas, violadas na infância, na maturidade, na senilidade. Carentes em saúde reprodutiva, morrem. Morrem de miséria, morrem analfabetas, morrem em refúgios, morrem de aids, fome.
Lutam e mantém o legado por um mundo mais digno.
Quis ser como outras mulheres.

* In: BRAZIL; ZIEGER, L. Bruxas e fadas: poemas em flor. Porto Alegre: Editora Evangraf Ltda., 2007. p. 78-80

quinta-feira, 14 de maio de 2009

TEMPO *

de Rosane O.D.Zimmer

Qual o tempo que tem o tempo?
Tempo mágico,
Tempo infinito, tempo alargado
ou
Tempo de espera, tão vã...


Que tempo o tempo me concede, me reserva?
de um até hoje ou apenas, talvez, de um até amanhã?
ou mesmo, ainda, o tempo de um até breve?


Onde encontro o tempo?
Será em olhares com tantas marcas, com tantas vidas, com tantas mortes, com tanta história?
Será em fios que teimam aflorar cada vez mais alvos?
Será nos sorrisos, nos olhos ou nas mãos?


Por onde andará o tempo?
Escondido, acabrunhado, perdido
ou
Na espreita, no aguardo, chega de mansinho... sem que ninguém o perceba
Mas como que tomando conta, apodera-se de tudo e em êxtase, varre o mundo, apodera-se do mundo e, finalmente, comanda o mundo.


Quem é o tempo?
Mulher de cabelos longos, cajado na mão
ou
de mente sábia, boca vermelha, de coração florido?
Mulher amaldiçoada, venerada,
fértil, de seios fartos
que não aceitou deitar abaixo de Adão?

Preciso do tempo?
Para olhar no horizonte a lua que se alarga, a noite que chega
O dia que escorre
O sorriso teima em brilhar no espelho,
Quero o tempo, mais tempo, para pedir colo, para murmurar, para compreender como o universo faz a sua dança.

Tempo simbólico, de relação, cronológico... tão intenso, nefasto, necessário
Tempo de outros tempos.


* In: BRAZIL, A; ZIEGER, L; ZIMMER, R.O.D. Evas e Liliths em Poesia. Porto Alegre: C.R.V.A./Evangraf, 2005.





Mulher de cor, com cor, na cor de Rosane O.D.Zimmer*

Mulher de cor corre
Mulher com cor avança
Mulher na cor aguarda.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Mulher de cor berra
Mulher com cor chora
Mulher na cor murmura.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Mulher de cor é imoral
Mulher com cor é safardana
Mulher na cor é aquela.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Qual é a cor daquela que é de cor, daquela com cor e daquela na cor?
Azul, verde, rosa-choque?
Quem são elas?
Que nomes possuem?
Como são os seus corpos?

Quem possui suas idéias, seus sonhos?
Quem é o dono da mulher de cor, da mulher com cor e da mulher na cor?

Mulher de cor, com cor, na cor, em quantas injustiças se depararam, em quantas vidas existiram, em quantas histórias foram contadas?

Mulher de cor, com cor, na cor,
Todas, simplesmente, mulheres.

* In: BRAZIL, A; ZIEGER, L.; ZIMMER, R.O.D. Evas e Liliths. Porto Alegre: C.R.V.A/Evangraf, 2005.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

E você? de Viviane Mosé

E você?

A palavra é uma roupa que a gente veste.
Uns gostam de palavras curtas.
Outros usam roupa em excesso.
Existem os que jogam palavra fora.
Pior são os que a usam em desalinho.
Alguns usam palavras caras.
Poucos ostentam palavras raras.
Tem quem nunca troca.
Tem quem usa a dos outros.
A maioria não sabe o que veste.
Alguns sabem e fingem que não.
E tem quem nunca usa a roupa certa pra ocasião.
Tem os que se ajeitam bem com poucas peças.
Outros se enrolam em um vocabulário de muitas.
Tem gente que estraga tudo o que usa.
E você, com quais palavras você se despe?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Paródia Roberto Carlos - Ensino tradicional

Além do Ensino Tradicional[1]
Composição: Angela Maria Iung Lavrati, Eliana Dalle Molle, Gisela Dalla Zen Feiten, Liciane V. Da Rosa, Patrícia S. da Silva, Paula B. Perotti e Scheila Duarte[2]
Além da Educação tradicional deve terAlgum lugar seguroPrá gestão reinventarOnde eu possa encontrarA democraciaTeoria e PráticaCom certeza...Lá nesse lugarO amanhecer é lindoCom qualidadeE a supervisão que vem vindo...Onde o educador podeCriar e recriarSer sujeito de sua práticaNa reorientação Curricular...Aproveitar a vidaReinventar a escolaSuperar o fracassoSem ter horaPra exclusão...Estudar o P.P.PEmancipatórioNum processo de construçãoNum trabalho coletivo...porque o aluno vem tudo isso existe láação e reflexãona prática educativaporque o aluno vem tudo isso tem valorde que vale o supervisorsem o professor

Além da conscientizaçãoExiste um lugar Ingênuo e CríticoPrá gente pensar...Lá Larálarálarálará LaláLá Larálaralarálará LaraláLá Laralaralarálará LaláLá Larálarálarálará Laralá...(2x)Se você não vem comigoTudo isso vai ficarNo horizonte esperando Pela Concepção Libertadora...
Se você não vem comigoNada disso tem valorSupervisor e Professor juntospela educação...Além do HorizonteExiste um caminhoParticipativo e coletivoPrá escola reinventar...Lá Larálarálarálará LaláLá Larálarálarálará LaraláLá Larálarálarálará LaláLá Larálarálarálará Laralá...(2x)
[1] Paródia á música de Roberto Carlos “Além do Horizonte”
[2] Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão Escolar: Administração e Supervisão- Faculdade da Serra Gaúcha
Disciplina: Concepções Teóricas e Práticas da Supervisão I e II
Professora: Msc. Rosane Oliveira Duarte Zimmer 2008 - Caxias do Sul/RS

Pós TURMA DE CAXIAS- estatuto da turma

FACULDADE DA SERRA GAÚCHA
Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão Escolar: Administração e Supervisão
Disciplina: Concepções Teóricas e Práticas da Supervisão I e II
Professora: Msc. Rosane Oliveira Duarte Zimmer
Acadêmicas: Angela Maria Iung Lavrati, Debora Boff de Barros, Eliana Dalle Molle, Fabiana Bof Bizotto, Gisela Dalla Zen Feiten, Graciela D. R. Kuwer, Kátia Verona, Liciane V. Da Rosa, Márcia Oliveira Machado, Maria Inês Vergani, Patrícia S. da Silva, Paula Braz Perotti, Sheila Duarte, Simone Munaretto, Tânia M. C. dos R. Sitta, Vanessa Bressan



ESTATUTO DA TURMA produzido em outubro de 2008


Artigo I - Fica decretado que o papel do "supervisor educacional" é ensinar aprendendo, investigando e abrindo caminhos; aprender refletindo, teorizando, transformando a prática. (Debora)

Artigo II - Fica estabelecido que o supervisor precisa contribuir de forma significativa para com os movimentos educativos que pretendem a transformação e a reinvenção da escola, através das práticas, das reflexões e dos processos de ensinar e aprender. (Gisela)

Artigo III - Fica decretado que o supervisor não pode perder a esperança de uma educação melhor, pois quem não tem esperança deverá trabalhar noutro lugar, pois a escola existirá sem supervisores, mas supervisores escolares não existiram sem a escola e o fatalismo diante da realidade cede seu lugar a uma esperança crítica que move os homens para a transformação. (Gisela)

Artigo IV - Fica decretado que não é somente o Supervisor Educacional que “faz supervisão”, mas de que a ação supervisora ocorre em todos os níveis do sistema e por todos os educadores que nela atuam. (Gisela)

Artigo V - Fica estabelecido que a partir do momento que se muda a concepção de gestão democrática do ensino, através da qual todos, em conjunto, planejam, discutem, executam, avaliam, participando, sistematicamente, das ações educativas e do apoio à educação, todos passam a ser co-responsáveis, não restringindo a responsabilidade somente ao Supervisor Educacional. (Gisela)

Artigo VI - Fica decretado, a partir de hoje, que cada um tenha definido seu papel na escola, é necessário estabelecer claramente as atribuições e responsabilidades do Diretor de Escola, do Orientador Pedagógico, do Supervisor Educacional e dos demais profissionais que nela atuam. (Gisela)

Artigo VII –Fica decretado o constante aperfeiçoamento dos gestores, onde procurará recursos e a participação dos profissionais de suas escolas. (Patrícia)

Artigo VIII - Fica decretado que possamos harmonizar a cabeça e o coração para melhorar nossa prática como professores, supervisores, enfim todos educadores. (Kátia)

Artigo IX- Fica decretado que o supervisor educacional precisa acompanhar a elaboração e a execução do Projeto Político Pedagógico da Escola, a fim de propor ações que contribuam para a viabilização dos objetivos traçados. (Gisela)

Artigo X - Fica decretado que o ouvir, refletir, conversar e propor em conjunto seja nossa regra. (Kátia)

Artigo XI - Fica permitido ao supervisor educacional sonhar com práticas escolares, que venham a traduzir a emoção da própria aprendizagem. (Eliana)

Artigo XII - Fica permitido ao supervisor educacional unir razão e emoção, pois o processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade. (Eliana)

Artigo XIII - Fica decretado que a supervisão procurará inquietar a comunidade escolar para que os educandos percebam o mundo como algo que pode ser mudado, transformado e reinventado. (Márcia)

Artigo XIV - Fica estabelecido que o supervisor seja como um profissional que deve estar capacitado para uma escuta sensível, que criticamente informada, leve em conta as fantasias, angústias e defesas que acompanham qualquer processo de mudança. (Sheila)

Artigo XV - Fica decretado que a aprendizagem é um processo que deve ser estimulado e orientado; e não delimitado e desgastado. (Graciela)

Artigo XVI - Fica decretado que o supervisor instigará o professor a realizar a avaliação da sua prática pedagógica, juntamente com o educando, pois o educando é um sujeito dessa prática. (Vanessa)

Artigo XVII - Fica decretado que o educador juntamente com o gestor precisa ter coerência e respeito aos saberes dos educandos, colaborando assim na criação de possibilidades para a sua própria produção. (Tânia)

Artigo XVIII - Fica permitido acreditar na supervisão como um sonho viável que exige de nós pensar diariamente a nossa prática, exige de nós a descoberta; a descoberta constante dos limites da nossa própria prática; prática, que significa perceber e demarcar a existência do que chamamos de espaços livres a serem preenchidos. (Paula)

Artigo XIX - Fica permitido o supervisor se constituir num articulador do projeto pedagógico de uma coletividade e destacar a importância de uma formação que reelabore a relação teoria e prática em supervisão educacional. (Paula)

Artigo XX - Fica decretado que a função das(os) supervisores (as), além de auxiliar os educandos no exercício da supervisão também devem acreditar no sonho de que uma escola melhor é possível e façamos uso das palavras de Freire: “Ai de nós, educadores, se deixarmos de sonhar sonhos possíveis.” (Liciene)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA
de Viviane Mosé
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.Algumas palavras quando alvejadas ao soladquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.Existem outras, e a palavra amor é uma delas,que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.Agora nunca vi palavra tão suja como perda.Perda e morte na medida em que são alvejadassoltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molhoem um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.O perigo neste caso é misturar palavras que manchamno contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.Outro cuidado importante é não lavar demais as palavrassob o risco de perderem o sentido.A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.Muito importante na arte de lavar palavrasé saber reconhecer uma palavra limpa.Conviva com a palavra durante alguns dias.Deixe que se misture em seus gestos, que passeiepela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,prolifera em toda sua possibilidade.Se puder suportar essa convivência até não maisperceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.
Eu sei, mas não devia
de Marina Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

arquivo pessoal