segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O não-lugar da formação

por Dr. Marcos Villela
Disponível http://www.redenoarsa.com.br/biblioteca/07se03_04_7929.pdf


Entrevista cedida ao "Diário Do Grande ABC", página "Diário na Escola" de Santo André em 3 de dezembro de 2004.

A formação do professor não deve ocorrer apenas em espaços formais,ela também pode acontecer em ambientes diferentes, heterodoxos, que podem ser denominados de não-lugares de formação.Essa é a tese defendida
pelo diretor do DEIF
(Departamento de
Educação Infantil e
Fundamental da Secretaria Municipal de Educação)de Santo André, Marcos Villela, que realizou palestra sobre esse tema no último dia 20, no Parque Escola, para educadores da rede municipal de ensino. O primeiro passo para a apropriação das reflexões de Villela é acompanhar o raciocínio do educador sobre a crise da sociedade contemporânea.
Sociedade Líquida – Villela fala sobre as teorias do sociólogo polonês Zygmunt
Bauman que defende que os valores que estruturam a sociedade não são mais tão sólidos quanto eram na década de 1960. Atualmente os valores podem ser mais associados ao estado líquido do que ao sólido, por serem mais maleáveis e não
completamente absolutos, sólidos, permanentes e duráveis quanto eram. Essa reflexão se estende para os relacionamentos entre as pessoas, para a economia dos países e para modelos políticos. Houve a queda do muro de Berlim, o fim da União Soviética e do modelo polarizado de capitalismo e socialismo. A própria democracia se apresenta de diversas formas, portanto mais maleável. Mas essa transição dos valores sólidos para líquidos não pode ser considerada como fim dos valores. “Líquido
ão é sólido, mas também não é gasoso, ue se dispersa “, diz Villela.
para educador, essa liquefação de
relações e condições dissolve identidades e exige que as pessoas tenham maior
amplitude nos pontos de vista. Mesmo os
lugares já não são tão solidamente únicos.
“Antes cada coisa estava em seu lugar, hoje
você vai ao
supermercado e
também pode
pagar conta de
banco, por exemplo.
O supermercado é
também banco e o banco
também está na casa lotérica, no
correio, que estão dentro do
supermercado. Cada vez menos há lugares
que você identifica tão logo entra pois, lá
dentro, o sujeito adquire diferentes
performances: faz compras, paga contas,
joga.”
O diretor do DEIF traça um paralelo com
os chats e salas de bate-papo que proliferam
na internet. “A pessoa tem uma identidade
quando entra, um login e uma senha, mas
posteriormente pode assumir a identidade
que quiser. Mais bonita, atraente, mais nova
ou velha, diferente da identidade com a
qual entrou naquele mundo virtual.”
Não-lugar – Nesse contexto, a escola
também muda. Já não é mais uma
instituição tão sólida quanto foi no passado.
A formação para o professor atuar nessa
escola também é diferente. “Antes o local
de formação era a universidade, a
licenciatura, o mestrado. O professor era
uma coleção ordenada de informações
pouco ágeis. Mas para esse mundo de hoje,
nenhum desses lugares de formação dá
conta da formação. Hoje, há muitas
identidades”, afirma o educador.
De acordo com Villela, considerando
como verdade que a sociedade está se
liquefazendo, o professor já não pode mais
ser visto como o agente, o sujeito, o que
sabe. Porém, é assim que ele é
erroneamente preparado pela formação
acadêmica.
Dentro desse desafio de articular várias
realidades dentro da escola, o diretor do
DEIF pergunta: “Qual é o profissional que
deve ir para a sala de aula? Onde ele deve
buscar sua formação, nos lugares de
formação?”
Para Villela, a resposta está na busca
pelos não-lugares de formação – a praia, o
supermercado, a rua, a vida. O professor na
sala de aula é professor, fora ele é professor
e muito mais. “Quando muda o cenário, as
personalidades podem assumir outros
valores e isso não é usado como instância
de formação”, diz. Porém, não se descarta a
formação acadêmica. “Não se trata de
trocar, mas de acolher as instâncias de não
formação. Não é para gaseificar esse valor,
mas liquefazer.”
A criança de hoje é diferente daquela de
10 anos atrás. Ela tem novos e variados
repertórios: é telespectadora, é internauta.
“O professor precisa adquirir dispositivos de
apropriação e sistematização dessa
realidade.” O educador tem que olhar para
o mundo fora da sala de aula e entendê-lo.
Precisa considerar maneiras de entender o
supermercado.
Um caminho consistente para essa
formação, defende
Villela, está em um
questionamento
sobre o qual
professor deve
constantemente
refletir e se fazer:
“Como dou conta
das coisas que eu
não dou conta?”
Não se trata de
refletir sobre o quê
ele faz, mas de
como lidar com
aquelas situações
extremamente
desafiadoras. “Por
exemplo, quando não
dá conta de uma
pergunta da criança.
Como se portar? Ele pode
pedir um tempo, pode mandar
calar a boca. Não são meros recursos
pedagógicos, é o jeito do professor dar aula
que aparece nessa situação. Quando o
homem não consegue explicar e entender é
que ele faz esforços e movimentos para
compreender. Esse é o exercício da auto-
formação.”
No mundo liqüefeito, explica Villela, a
realidade se constitui a partir do olhar.
“Então, é preciso cuidar do olhar, é preciso
sempre perguntar como dou conta do que
eu não dou conta, pois isso faz o professor
se apropriar do seu olhar. Se isso está no
dia-a-dia, ele está o dia todo em formação,
permitindo-se infinitas possibilidades de
olhar o mundo. Sem regras, sem valores
universais. Formação não é formatação de
professores. A formação plana tem valores
com peso de formação universal. Sem
valores sólidos e verdades absolutas, um
valor importante é o cuidado que a pessoa
deve ter com as outras.”
O educador ressalta a importância da
experimentação. “Nessa sociedade não há
mais crise e, depois, estabilidade. Há
questões pipocando o tempo todo. O aluno
faz perguntas que deixam o educador
suando frio. Para respondê-las pede-se a
experimentação, o questionamento de
como eu dou conta das coisas que eu não
dou conta.”
Não significa que tudo pode, há
necessidade uma regularidade. “Trata-se de
liquefação e não gaseificação. Método é
pensar o tempo todo, de forma diferente da
que acontece no espaço formal.”

sábado, 29 de agosto de 2009

SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA DA GESTORA/SUPERVISORA

RESENHA BASEADA NA OBRA DE PAULO FREIRE - PEDAGOGIA DA ESPERANÇA: UM REENCONTRO COM A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

Por Ana Fausta Borghetti*


Introdução

A obra a ser trabalhada nesta resenha é Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Esta obra foi escolhida num momento em que a aluna estava procurando motivos para voltar a acreditar na instituição escola, no grupo de professores e funcionários como uma equipe que sonha, que briga, que luta por ideais. Motivos que façam com que sonhemos novamente com uma sociedade igualitária, respeitosa, que consiga enxergar ao seu redor e, que confirme que esta construção passa pela educação.

O título Pedagogia da esperança um reencontro com a pedagogia do oprimido já nos enche de expectativas para uma leitura que nos mostra que é possível esta construção de instituições capazes de auxiliar o ser humano no verdadeiro encontro consigo mesmo. Instituições com pessoas capazes de tornarem-se melhores, evoluírem, crescerem e enxergarem a grandeza deste processo.


Apresentação do Autor e da Obra

Paulo Freire é um dos pedagogos brasileiros mais conhecidos no mundo por nos trazer reflexões, na sua maioria, simples sobre o verdadeiro significado da educação, sobre o verdadeiro papel do professor, sobre a grandeza da relação professor – aluno. Este pernambucano foi um menino que cresceu em meio à pobreza o que, de certa maneira, o obrigou a ver e ouvir o mundo e as pessoas com o coração e este é o seu diferencial, este é o seu maior ensinamento: ver e ouvir com o coração.

A Pedagogia da esperança começa trazendo momentos muito marcantes vividos na pedagogia do oprimido: momentos do exílio – momentos de medo, de saudade, de ESPERANÇA. “Na minha primeira noite em La Paz, ainda sem sofrer o mal da altitude que me atacou no dia seguinte, refleti um pouco sobre a educação da saudade, que tem a ver com a Pedagogia da esperança.” (p. 34)

Acredito que tenha sido neste momento que nasceu a Pedagogia da Esperança, mas a obra nos traz também momentos em que o autor convive com camponeses, com pessoas simples, conhece suas verdades, suas crenças e, assim, entra em contato com a SABEDORIA DO POVO.

Minhas longas conversas com pescadores em suas caiçaras na praias de Pontas de Pedra, em Pernambuco, como meus diálogos com camponeses e trabalhadores urbanos, nos córregos e morros do Recife, não apenas me familiarizaram com sua linguagem mas também me aguçaram a sensibilidade à boniteza com que sempre falam de si, até de sua dores, e do mundo. (Freire, 1994, p. 69)
A obra foi escrita na década de 90 em meio a “democratização da sem vergonhice que vem tomando conta do nosso país” (p.10). Neste momento, o povo sai as ruas o que para o autor é motivo de esperança. Esperança de uma verdadeira democracia, com a participação efetiva do povo. Freire ainda dizia: “Há uma esperança em cada esquina.” (p.10)

Neste ensaio, Paulo Freire nos conta sobre visitas a países da América Latina, Central, Caribe e África para (re)discutir idéias que estão na Pedagogia do Oprimido. E palestrando, conversando, visitando, vivendo, revive e, algumas vezes, esclarece, os principais pontos abordados na Pedagogia do Oprimido.

Durante a obra, Paulo Freire não cria uma educação elitista, mas tem a coragem de num país elitista propor uma educação popular e, sua teoria é muito simples – é auxiliar na construção de um ser humano humanizado. Mas, para que isto aconteça, é necessário que antes, nós profissionais da educação nos humanizemos e, isto só acontecerá no momento em que nos enxergarmos, não com egoísmo e arrogância, mas como seres em construção, em busca de sermos melhores a cada dia, a cada encontro e, nos permitamos entender e respeitar, sem julgamento, que o nosso aluno e o nosso colega, também está em construção.

...quem sabe possa ensinar a quem não sabe é preciso que, primeiro, quem sabe saiba que não sabe tudo; segundo, que, quem não sabe, saiba que não ignora tudo. Sem esse saber dialético em torno do saber e da ignorância é impossível a quem sabe, numa perspectiva progressista, democrática, ensinar a quem não sabe.(Freire, 1994, p.188)

O importante é assumirmos o papel de aprendizes neste grande laboratório que se chama vida. Assumir o papel de aprendiz nada mais é do que agir – refletir – agir, que é uma das categorias de Paulo Freire.


Categorias

A primeira e, talvez principal categoria que aparece na obra é o inédito-viável. O próprio título nos aponta a existência desta categoria e pode ser comprovada quando Freire coloca que o exílio traz muitos sentimentos mas, em especial da esperança. A esperança de voltar para casa, de rever a família, amigos, de receber uma carta e, de maneira mais profunda de mudar valores de um país.

O saber necessário à gestora/supervisora quanto a esta categoria é de nunca perder a esperança em relação ao utópico, em relação ao auxílio na construção de seres humanos melhores, mais iluminados, de instituições voltadas para todos, para uma aprendizagem de evolução. É preciso ter coragem para ultrapassar “situações-limites” e caminhar em busca do sonho realizável e, junto a esta realização humanizar e concretizar o ser-mais. (p. 207)

Pode-se apontar neste período de exílio que o momento político-histórico que se vivia na América Latina traz na sua essência o papel da Supervisora, uma profissional que controla alunos e, principalmente, colegas, auxiliando ideais ditatorescos.

A segunda categoria encontrada é do senso-comum. A sabedoria e cultura populares não podem morrer pois caso isto aconteça, morrerá a humanidade. Para tanto, urge a necessidade de gestores, supervisores e educadores em geral entenderem a importância do “respeito ao saber de experiência feito” (p.28).

Não são os alunos que têm que entrar no nosso mundo; nós é que temos que entrar no mundo deles. “A necessidade de que, ao fazer o seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão do mundo que o povo esteja tendo. (p. 27)

Nesta categoria, o saber necessário à gestora/supervisora é de sempre respeitar a realidade e o nível de desenvolvimento de seus alunos e colegas e, entender que o saber popular é tão importante quanto o saber científico. Questionar a sabedoria acadêmica que até então não auxiliou na construção de uma humanidade mais humana e, considerar a sabedoria popular.

Temos dificuldade de “ver” o outro. Pensamos que o nosso discurso todos entenderão e é neste momento que afastamos o outro. No exato momento em que não nos permitimos entrar no mundo deles. “Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção da cidadania” (p. 41)

Outro saber necessário encontrado aqui é de permitir que nossos alunos e colegas tenham voz – a sua voz, não o discurso formatado na escola e na academia, mas o discurso de vida deles, da sua realidade, das suas vivências. E, nós, precisamos ter a sensibilidade de conhecendo esta realidade, permitir a troca e o crescimento. Mas, para que consigamos dar voz aos outros é necessário que aprendamos a ouvir. Mas não é um simples ouvir, é ouvir com atenção, é o corpo todo estar centrado neste ato. É entrar em sintonia com o outro.

Freire confirma a importância deste discurso quando nos diz “na verdade, é no jogo das tramas de que a vida faz parte que ela – a vida – ganha sentido” (p. 35). E, nós educadores, supervisores, gestores, temos sempre pronto um discurso formatado e idealizado e, na maioria das vezes, damos pouca importância ao jogo de tramas da vida e ao aprendizado que este traz intrínseco.

Isto me leva a pensar na falta de comprometimento e de vontade que nossos alunos têm hoje. Qual o significado da escola para eles? Quais relações e aprendizados acontecem no ambiente escolar? Será que o nosso discurso não está muito distante, sem significado para estas crianças e adolescentes? Será que nós não estamos falando só do sal enquanto eles gostariam de falar do tempero como um todo? Aqui também podemos levantar a questão da interdisciplinaridade, da nossa divisão em caixinhas, da compartimentalização do conhecimento.



Considerações finais

O que fica muito claro é que nós supervisores/gestores/educadores precisamos nos voltar para a terceira categoria de Freire que está neste contexto que é a da ação – reflexão – ação. Não podemos nos considerar seres prontos, formados, que tem mais conhecimento que os outros porque isto é, no mínimo, questionável. Faz-se necessário criar ambientes de crescimento mútuo, de espaço para todos, um ambiente onde alunos e professores estudem, cresçam, desenvolvam-se como seres humanos e, para isto é fundamental que questionemos atitudes, problematizemos conteúdos e toda a realidade escolar.

Para finalizar trago Leonardo Boff, que no meu entender, coloca através de um pensamento o momento que nos encontramos e sugere a solução.


Uma asa mais uma asa...

O ser humano é semelhante a um anjo que entrou numa grave crise ao cair e perdeu uma asa. Com uma asa só não consegue mais voar. O que faz então? Abraça-se a outro anjo que também caiu e perdeu uma asa. Assim, um completa o outro. Abraçados, têm novamente duas asas. Superaram a crise. Erguem vôo e conseguem voar para seu destino.

Se não fossem solidários e se não se abraçassem mutuamente, estariam definitivamente perdidos. Uma asa mais uma asa não são duas asas, mas um anjo inteiro que recupera a sua integridade e sua capacidade de voar- e de voar nas alturas, realizando o chamado de sua natureza. (Boff, p. 110)

A partir do momento que supervisores, gestores, educadores em geral enxergarem-se e auxiliarem-se mutuamente, com certeza, estarão aptos para acolher e auxiliar crianças e adolescentes na sua evolução neste planeta.




* Graduada em Secretariado Executivo Bilíngue - Português/Inglês - Unisinos - 1993
Pós-graduada em Administração de Marketing - Unisinos - 1994
Pós-graduada em Gestão e Supervisão Educacional - FACOS - 2008

Professora horista do Centro Universitário Univates - desde agosto/2006
Diretora do Colégio Cenecista Mário Quintana - desde janeiro/2007
Vice-diretora do Colégio Cenecista Mário Quintana - de jan/2005 a dez/2006
Coordenadora do Centro de Línguas do Colégio Cenecista Mário Quintana - CMAQ 2001 a 2004
Professora de Língua Inglesa e Língua Italiana do Centro de Línguas do CMAQ 2000 a 2004
Coordenadora do Laboratório de Informática do CMAQ - 1995 a 2000
Professora de teatro, instrutora do Clube de leitura do CMAQ - 1997 a 1999


Resenha realizada na disciplina de Fundamentos Políticos-filosóficos e Sócio-pedagógicos da Gestão e Supervisão Educacional no curso de Lato Sensu em da Gestão e Supervisão Educacional/FACOS- na cidade de ENCANTADO/2007 pela docente Rosane Oliveira Duarte Zimmer

Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. 3ª. Edição, 1994, ed. Paz e Terra.

BOFF, Leonardo. A força da ternura – pensamentos para um mundo igualitário, solidário, pleno e amoroso. 1ª. Edição, 2006, ed. Sextante.

MEDO E OUSADIA ¹

por Josenice Panizzon ²

É impossível ensinar sem ousar. (Paulo Freire)



“O que é ensino libertador? O que é ensino dialógico? Como o professor se transforma em educador libertador? Como é que os estudantes iniciam seu processo em um método dialógico?” (FREIRE e SHOR, 1986, p.11). Essas e outras indagações relacionadas à educação libertadora é o que vamos encontrar na obra que nos propomos a resenhar.
De autoria de Paulo Freire e Ira Shor, o livro, em forma de diálogo, discute questões cotidianas pertinentes ao processo de ensino e aprendizagem ainda existentes em nosso atual contexto histórico. Analisa elementos que se constituem em desafios reais e concretos na perspectiva da reinvenção e recriação dos espaços escolares. Em suma, apresenta as dinâmicas, os medos, ousadias e as potencialidades dos diferentes sujeitos comprometidos com o processo pedagógico.
Paulo Freire, pedagogo, filósofo, escritor, “cidadão do mundo”, autor de várias publicações, de modo especial, o livro intitulado “Pedagogia do Oprimido”, cuja obra analisou e auxiliou enfaticamente a prática educativa hodierna, bem como sua significativa contribuição para a alfabetização de jovens e adultos, prática essa que o levou ao reconhecimento mundial como educador.
Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco. Alfabetizou-se em sua própria casa, partindo de suas próprias palavras, de sua prática, de sua experiência. Foi exilado durante a ditadura militar brasileira, retornado ao país somente após a deposição desse mesmo sistema político.
Fazia da educação sua paixão. Vivia, vivenciava e “saboreava” a causa educativa. Morreu em 02 de maio de 1997, em São Paulo, esperançoso pelas mudanças sociais, cujo desfecho vinha ocorrendo sob variados aspectos, tais como “as marchas” das mulheres, o movimento dos sem terra, dos desabrigados, dos gays, etc. Sempre acreditou no ser humano, como agente de constante transformação, sendo contrário ao “determinismo histórico” e ao “fatalismo social”, próprios de nossa época. A importância de sua obra está em defender a educação como pressuposto norteador da transformação social, partindo da concepção e da construção de novas relações pedagógicas.
Ira Shor, educador norte-americano, estudioso e crítico dos rumos da reforma da educação em seu país. Esteve ligado na luta pela melhoria das condições de ensino, de modo especial, à classe trabalhadora americana e demais minorias sociais marginalizadas.
A obra é toda baseada no diálogo entre esses dois educadores. Sendo assim, torna-se indispensável para a elucidação dos problemas práticos e teóricos colocados pela pedagogia dialógica. É também referência no que diz respeito à riqueza de informações, construção de conceitos, análises e exemplificações acerca do “cotidiano do professor”.
A característica primordial deste texto está em se constituir em um livro falado. Freire (p.13) justifica, dizendo que “[...] é que o diálogo é, em si, criativo e re-criativo.” E Shor (p.13), por sua vez, ratifica, escrevendo, “[...] espero que encontremos um estilo dançante. Assim, seremos ao mesmo tempo poéticos, divertidos e profundos.”.
O livro divide-se em sete eixos norteadores que são todos especificados, elucidados e exemplificados no decorrer da leitura, estabelecendo-se continuamente ligações intrínsecas com a temática central “medo” e “ousadia”, possibilitando, dessa forma, uma leitura envolvente, dinâmica e extremamente informativa, conceituando e reconceituando os modelos educativos vigentes.
Cada capítulo trata de assuntos específicos, podendo até serem analisados de forma metódica, isolada e, paradoxalmente, as outras leituras e obras de Paulo Freire.
A primeira parte do livro aborda as possibilidades e saberes que um professor deve possuir para transformar-se em um educador libertador, enfatizando o modo, pelo qual à educação se relaciona com a mudança social. Já no segundo capítulo evidencia os “temores” e os “riscos” da transformação, os quais devem ser encarados sem medo, pois ele “imobiliza” e estagna os sujeitos “aprendentes”. Os autores defendem que não devemos negar o medo, mas cultivá-lo, pois “[...] o medo vem de seu sonho político, e negar o medo é negar os sonhos”. (p.70)
Logo no terceiro eixo do livro encontramos a estrutura e o rigor necessários à educação libertadora. As classes dialógicas tornam iguais professores e alunos? Podemos constatar a relevância desse tema quando Shor afirma que (p.98) “[...] a abordagem dialógica é muito seria, muito exigente, muito rigorosa e implica numa busca permanente de rigor [...]”. Nesse aspecto, os autores desvelam de forma nítida sua aversão e contrariedade à definição de “rigor” postulada como sinônimo de “autoritarismo”. Salientam ainda, a importância da superação do ensino conteudista, “bancário”, instrucionalista e descontextualizado que apenas serve de suporte ao capitalismo e a classe dominante.
Na seqüência, o diálogo que segue, trata da conceitualização do “método dialógico de ensino”, onde Freire (p.123) diz que “[...] nós seres humanos, sabemos que sabemos e sabemos também que não sabemos. Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade”. Introduzem ainda novos conceitos e dinâmicas para as práticas docentes, enfatizando o valor significativo do diálogo, da ação em conjunto com os discentes e da escuta no processo educativo como formas fecundas para chegarmos à liberdade, a cidadania e a transformação.
Ira Shor inicia o quinto capítulo, denunciando a “cultura do silêncio” americana definida por ele como sendo “[...] uma tolerância passiva à dominação” (p.149). E anunciando uma “democracia da libertação”, defendia também por Freire (p.162) ilustrada na frase seguinte:“ [...] mudar as condições concretas da realidade significa uma prática política extraordinária, que exige mobilização,organização do povo, programas [...]”,onde exista de fato a atuação, o protagonismo dos sujeitos envolvidos nesse processo.
Nas duas últimas partes do “livro falado” a centralidade do diálogo são educadores e educandos, inferindo principalmente na questão “como podem os educadores libertadores superar as diferenças de linguagem existentes entre eles e os alunos?” (p.171). Indagando também se “Temos o direito de mudar a consciência dos alunos?” (p.203). Em síntese, agrega os “medos” e “ousadias” da educação emancipadora, conversando sobre como iniciar a transformação docente, discente e essa em comunhão com aquela. Freire (p.203) destaca que “o educador libertador nunca pode manipular os alunos e tampouco abandoná-los à própria sorte. [...] assume um papel diretivo necessário para educar”. Neste sentido, os alunos poderão constituir-se como agentes é como cidadãos em um mundo “para todos”.
É imprescindível destacarmos algumas expressões e conceitos, elencados por Freire e Shor relevantes para a nossa reflexão enquanto educadores, e gestores do século XXI, tais como “fatalismo social”, a distinção entre “Laissez-faire, educador autoritário e educador libertador”, “a relação capitalismo-currículo-alienação”, “transferência x diálogo”, “construção x verbalização”, “medo-política-sonho”, a educação como um ato inerentemente “político”, “Pedagogia libertadora x Pedagogia bancária”, “a linguagem do povo/realidade”, “produção x reprodução”, “autoridade x autoritarismo”, “educação e economia”, etc.
Dos conceitos elencados acima, um vem merecendo destaque no atual cenário educativo brasileiro, é a relação “currículo - capitalismo-alienação”. Este aspecto é evidenciado comumente por nós educadores e gestores durante o processo educativo de nossas escolas, sendo essencial refletirmos sobre algumas questões: se o objetivo maior da educação é formar cidadãos livres e conscientes, como pode o currículo, base dessa formação, estar impregnado de ideologias capitalistas, onde apenas beneficiam alguns?Que função paradoxal é esta que o currículo assume?O que está subentendido naquele “rol de conteúdos pragmáticos?” Quem realmente “formamos”?Qual a visão de “homem” e “mundo” nesse contexto?
A obra “medo e ousadia” retrata profundamente essa questão, atribui-lhe significação e propõe soluções viáveis por meio da prática libertadora. O maior agravante, nesse caso, apesar de termos acesso a todas essas informações, é a lentidão e a compartimentalização do processo de mudança, isto é, ou nos preocupamos com a reprovação ou então com a evasão, ora nos indagamos sobre os conteúdos, ora sobre a falta de interesse dos nossos alunos, como se tudo isso não estivesse interligado, como se não fizesse parte do mesmo processo.
Assim, acredito que a grande ousadia para a próxima década é concebermos a educação sob um enfoque político de mudança e de integração, sendo o propósito holístico, uma possível conseqüência disso, onde as relações se conjugam, sendo nosso papel, principalmente como gestores, entender essas relações, adaptá-las à nossa realidade e efetivar a mudança tanto almejada por meio da retomada de conceitos sistemáticos e globais em termos de educação. Enquanto tentarmos executar melhorias apenas parciais, sempre haverá uma “válvula de escape” para os velhos problemas, os quais serão renomeados e até reconfigurados, porém seu alicerce estrutural não sofrerá modificações.
Em contrapartida, se objetivamos, de fato, transformar a educação, necessitamos exaltar expressões como “autoridade / liberdade”, “democratização da escola pública”, “formação permanente”, sendo estas responsáveis e co-autoras pela superação da educação “bancária” para a emancipação.
A curiosidade epistemológica e a certeza de nosso inacabamento (Freire, 1996), serão o suporte necessário para a construção em conjunto de soluções para a problemática que envolve a educação, bem como de estabelecer bases para as projeções futuras.
Neste sentido, é indiscutível a relevância da leitura desta obra freireana para todos os educadores e gestores, pois nas palavras de Ana Maria Saul, ao também prefaciar esta obra (1986, p.8), referindo-se a Freire, salienta que “[...] este trabalho poderá dirimir muitas das nossas percepções equivocadas sobre o seu pensamento no que diz respeito às possibilidades da educação libertadora no contexto escolar”. Ademais, a obra é uma raridade para todos que acreditam no papel da educação e do educador na transformação da sociedade.
_________________
¹ Resenha da obra: FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: O Cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, 224 p. Este trabalho fez parte das atividades pertinentes à disciplina Concepções Teóricas e Práticas de Gestão I e II, do curso de Especialização Latu Sensu em Supervisão e Gestão Escolar, na Faculdade da Serra Gaúcha, ministrada pela professora Mª. Rosane Zimmer.
² Pedagoga, Especialista em deficiências Múltiplas e aluna do Curso de Pós-graduação em Supervisão e Gestão Escolar, julho 2009.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Caminhos da Educação


por Aline Costa Foss, Cristina Araldi, Dionéia Brogliatto, Fernanda Guarreze Guisolfi, Josenice Panizzon, Maristela Argenta Webber, Rodrigo Schiavenin e Solange Lusa Rossi*



Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

Da caverna a luz
Do mito a verdade
Da razão a ciência
A busca pela liberdade

Justiça igualdade
Sejamos Gregos na vitória!
E na virtude romanos!
Procuremos ensinar de acordo com a natureza humana

Proibir a educação?
Relegar o povo a miséria?
Coibir a voz do cidadão?
Será a idade das trevas?

Moderno, Oh moderno!
A ciência é teu fundamento
O ser é teu instrumento
A educação o caminho do conhecimento

Ordem e progresso!
Eis aqui o caminho do sucesso
Da educação estagnada
E da população alienada.

Vamos! Vamos! Rumo a libertação
O pensamento crítico renova a educação
Voltada para a formação do cidadão
Construindo uma nova nação

Nação esta que ainda carece de educação
E carrega os resquícios da colonização
Mas a força e a união, junto a ordem e progresso
Fazem nossa educação vingar com sucesso.


* Relatório de Ágora apresentado na disciplina de Concepções Teóricas e Práticas da Gestão I e II desenvolvida pela professora Msc.Rosane Oliveira Duarte Zimmer no Curso de Pós-graduação em Gestão e Supervisão Educacional pela Faculdade da Serra Gaúcha/agosto de 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Jamais nos calarão


Rejane de Oliveira
Presidente do CPERS/Sindicato
Artigo publicado no jornal Zero Hora em 19/07/2009

Quando um aluno perguntar: “professora o que você fez pelo nosso futuro?” Poderemos dizer de cabeça erguida: nós lutamos incansavelmente.Lutamos para que a verdade apareça, mesmo que seja contra os interesses daqueles que têm a obrigação de divulgá-la. Lutamos para que as verbas da educação não sejam mais decepadas. Para que laboratórios, bibliotecas e escolas não sejam fechados. Para que crianças não tenham que estudar em escolas de lata.. Para que não reduzam os míseros salários dos educadores, em cumprimento de acordo com o Banco Mundial. Para que os problemas sociais não sejam deixados de lado, enquanto os recursos públicos podem estar sendo esvaídos pela corrupção.Estamos cumprindo o nosso papel ao ajudarmos a criar o Fórum dos Servidores Públicos Estaduais – formado por dez sindicatos, entre eles o Cpers. Sabemos que só com união poderemos estancar a derrama, a destruição do serviço público e o ataque às carreiras dos servidores.Só unidos pressionaremos pelo impedimento de um governo que vive sob o signo de escândalos – em denúncias, aliás, que vieram principalmente de quem esteve lado a lado com a governadora.Para aqueles que acham que passamos dos limites, perguntamos: até onde tem que se curvar um povo que tem seu Estado destruído e vilipendiado? Que tem a imprensa empurrada e presa? Que tem a voz calada pelos cassetetes e as mãos algemadas pelo autoritarismo? Que sofre com a tentativa de transformação de vítimas em algozes? Tudo isso por termos feito um ato pacífico na rua pública, em frente à mansão da governadora, cuja compra está envolta em denúncias de desvios de dinheiro e irregularidades.Aliás, nós já sofremos esse tipo de violência na ditadura militar e no Fora Collor. Mas, mesmo sofrendo essas acusações, não podemos calar, pois quando algo está errado, alguém precisa colocar a boca no trombone. Depois vem outro e mais outro, até que sejamos centenas, milhares, milhões. E é só quando o povo toma as ruas e exige seus direitos que as coisas se modificam. Foi assim contra a ditadura. Foi assim no Fora Collor. Será assim no Fora Yeda. Pois quem resistirá a centenas de milhares de pessoas gritando em uma só voz: impeachment já?Definitivamente, nós, educadores, podemos dormir com a consciência tranquila de não aderirmos à teoria dos que nada ouvem, nada falam e nada veem. Afinal, lutar também é educar.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

QUE ESCOLA QUEREMOS?

por Fernanda Alessi Tosetto. Giovana Zorzi Zuppa, Silvana Bolzoni, Márcia Breginski, Denise Otobelli, Teresinha A. V. Bertin, Roberta Pelizzer, Franciele de Oliveira*



A partir do estudo do livro de Moacir Gadotti, podemos entender a história da educação no mundo ao longo dos anos e percebemos que muitas tendências surgiram, desapareceram e emergiram. A escola que temos hoje, é fruto dos estudos realizados há algum tempo e nossa prática, com certeza, também. Essas tendências acompanharam os fatos históricos de suas épocas e foram desenvolvidas pela indignação de seus idealizadores, sentida a cada momento vivido por eles.
A escola que queremos provavelmente é emergente de alguma época da história mundial, mas essas idas e vindas da educação são consequência da criticidade humana, pois estamos sempre em busca de mudar o que está acontecendo, dessa forma podemos dizer que:
É como se a mente fosse um grande baú cheio de brinquedos, e nós fossemos uma criança que, deslumbrada escolhe um para brincar, mas logo se cansa, jogando-o de volta no baú, para que outra criança o descubra no futuro. Nos olhos de cada criança, o mesmo brinquedo é sempre uma grande novidade.(GLEISER, 1998).
Atualmente, vemos o poder público importando idéias e ideologias estrangeiras e aplicando em nossas escolas de forma descontextualizada da realidade dos estudantes brasileiros. Mostrando o quanto o professor está desacreditado e desvalorizado. Ao contrário deveriam iniciar a valorização deste profissional, pois já mostramos que vários brasileiros desenvolveram excelentes trabalhos mundialmente conhecidos. Porém se observarem o que nos diz Gleiser, hoje acreditam que essa é a forma correta de proceder, daqui a algum tempo poderão pensar diferente.
Enfim, acreditar, lutar e ter esperança na utopia pedagógica voltada para uma escola de qualidade, com uma visão global da educação como prática social. Se nos propormos a educar os sujeitos históricos, desse processo, ao mesmo tempo em que nos educamos enfrentamos os conflitos e as contradições, não podemos ficar apáticos. Isso encoraja o nosso trabalho como seres sociais, transformadores de uma realidade que de sentido à utopia dessa educação que idealizamos e sonhamos.
Mas afinal, que escola queremos? Provavelmente resposta está no momento histórico atual, no tipo de sociedade que temos, nas necessidades dos seres e a tendência que se enquadra em tudo isso.

BIBLIOGRAFIA
GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2003.
A imaginação pré-socrática e a origem da ciência, por Marcelo Gleiser:
Disponível: http://marcelogleiser.blogspot.com/search?updated-min=1998-01-00%3A00%3A00-08%A00&updated-max=1999-01-01T00%3A00%3ª00-08%3ª00&max-results=50

* Relatório de Ágora apresentado na disciplina de Concepções Teóricas e Práticas da Gestão I e II desenvolvida pela professora Msc.Rosane Oliveira Duarte Zimmer no Curso de Gestão e Supervisão Educacional pela Faculdade da Serra Gaúcha em Flores da Cunha /julho de 2009.

domingo, 5 de julho de 2009

RESENHANDO “CARTAS À CRISTINA”

Luciana Camargo Bertinetti*

Dentre as duas opções de obras do educador Paulo Freire, escolhi Cartas a Cristina, pois me interessa conhecer a vida e a caminhada do autor. Sempre tive um pré-conceito em relação à escrita de Paulo Freire, com a leitura da obra busquei com um olhar mais aguçado conhecer o pensamento de vida de Paulo, sua visão política, educacional e social. Busquei com as Cartas a Cristina, pensar e repensar o papel do supervisor, através das experiências vividas e comentadas pelo autor, Paulo Freire.
A obra citada a cima, foi escrita por Paulo Freire (educador brasileiro defensor da educação popular, nascido no Recife em 1921 e veio a falecer em São Paulo em 1997), a partir de um pedido de sua sobrinha Cristina. Tio e sobrinha se correspondiam a muito tempo desde os anos 70, até então Cristina era apenas uma adolescente, quando começa seus estudos universitários surge daí a curiosidade de conhecer mais a fundo seu tio que pouco convivera com ela.
Até então, conhecia a pessoa do tio, através do testemunho de minha mãe, de meu pai, de minha avó. [...] Gostaria, de que você me fosse escrevendo cartas falando algo de sua vida mesma, de sua infância e, aos poucos, dizendo das idas e vindas em que você foi se tornando o educador que está sendo (p. 30).
A obra nos mostra as diferentes fases da vida de Paulo Freire, da infância de dificuldades até se tornar o educador otimista e humanitário em que se tornou. O autor relembra com saudades de sua infância, dos primeiros professores, das amizades, do tempo do exílio, das experiências profissionais, da convivência com sua mãe católica e seu pai espírita, de como as diferenças foram importantes para que acreditasse na necessidade de aproximar as diferentes classes sociais, as diferentes visões políticas, para que se criasse um diálogo entre as sociedades. Esta edição ainda traz notas formuladas pela segunda esposa do autor, Ana Maria Araújo Freire, o título da obra esta maior, as cartas têm títulos, dentre outras modificações, tornando a leitura mais clara e compreensível. Compreender o passado, o caminho trilhado pelo educador Paulo Freire, não seria possível sem a leitura das Cartas a Cristina.
As cartas a Cristina, vêm cheias de lembranças e emoções, quando Paulo Freire através destas lembra de sua infância e adolescência de fome, de como isso lhe foi importante, para que iniciasse um sentimento de esperança no mundo. Descreve que o homem no qual se tornou é diferente do menino que viveu a sua realidade dentro de sua família, de suas escolas, com seus amigos, mas um não poderia existir sem o outro. O amor no interior de sua família, fez com que lutassem a cada dia pelo problema que se instalara sem pedir licença, a fome. O autor se transporta muitas vezes à realidade de outras crianças com as quais conviveu já sendo educador, podemos exigir que estudem tal fórmula, se elas têm problemas maiores do que os vistos na matemática, que o cansaço, o desgaste que carregam consigo para a escola, é muito maior que uma simples preguiça de estudar e sim, as dificuldades enfrentadas por suas famílias, a falta de comida e até de moradia. Na época em que Paulo Freire estudava, quando menino, o simples decorar é sinal de inteligência e a dúvida que nos fica, é que se ainda não é hoje. Se desde a época do autor tivesse sido trabalhado o papel do supervisor-educador, quem sabe essa concepção de inteligência não existiria mais. Paulo Freire descreve o educador progressista como aquele que não diverge seu discurso de sua prática. O autor sempre traz a teoria ligada à prática, dando exemplos de acontecimentos de sua vida, como no episódio do furto do mamão do vizinho, como aprendemos mais fácil a fazer contas a partir de nossa realidade, do que mesmo dentro da escola com trabalhos programados, que não precisam de nossa história e nem de nossa cultura para serem realizados. Paulo Freire conheceu a dura realidade da vida muito cedo, se dividia entre o aventureiro menino e o trabalho necessário.
Como a imagem destorce a realidade, Paulo Freire trata com atenção de algo tão irrelevante para os demais, que se pensado como o fez nos diz muito mais do que parece. Fala da gravata de seu pai e do piano alemão de sua tia, como estes dois objetos foram importantes para manter a imagem da família de classe média que apenas passava por uma crise, na qual abalou grande parte da sociedade, a crise econômica de 1929. Isto o autor denomina de expressões de classes, estas expressões, o andar, o cumprimentar, fez com que sua família atravessasse a crise sem deixar de manter sua posição na sociedade. Acredita o autor, que graças ao piano e a gravata de seu pai (símbolos de classe) o vizinho jamais desconfiara de que ao lado estariam os envolvidos com o sumiço da galinha, que havia sido morta por Paulo e seus irmãos, para que tivessem um almoço de domingo, novamente transporta a teoria com um exemplo prático. Ainda escreve o autor, que aos oito anos, já buscava a razão de ser das coisas, através dos muitos ruídos que escutava no quintal de sua casa. Lá também neste quintal, aprendeu a escrever suas primeiras palavras com a ajuda de seu pai e de sua mãe, que nunca lhe negaram atenção, com eles Paulo aprendeu o sentido da palavra compreensão e diálogo. Aos seis anos Paulo Freire conheceu sua primeira professora, Eunice, convidado por ela assim, como em sua casa sempre a conhecer e não a decorar ou acumular conhecimentos. A educação que tivera quando menino tanto em casa como na escolinha particular de Eunice, o fez otimista e uma pessoa crítica, sempre buscando formas de ação compatíveis com sua opção política. Paulo Freire, apesar de ter sido estimulado a crescer, viveu em uma época em que certos assuntos lhe eram proibidos, o tema sexo e tudo que era ligado a ele não eram de comentados em público, assim Paulo foi sanando suas dúvidas e curiosidades com irmãos ou amigos mais velhos. E aqui tornamos a ver o quanto crítico foi a pessoa de Paulo Freire, desde moço indagava-se, como é possível ser motivado a questionar se em certos lugares da sociedade da qual viveu não poderia se manifestar sobre assuntos que afrontassem a moralidade de alguns, hoje ainda vemos isso, relacionado sempre ao mesmo tema gerador, sexo. O autor volta a falar no educador progressista, em relação ao tema sexo, fala sobre os exageros que podem causar em liberar demais as curiosidades, o educador progressista deve sempre estar atento, pois “resvalando para incoerências, sacrificamos o sonho estratégico” (p. 62). A experiência traumática com a mudança do Recife para Jaboatão e a insegurança com que estava por vir, marca esta carta. O que deixava pra traz, como a escola que freqüentava há apenas três meses e a querida professora, que marcou o processo de formação da pessoa Paulo, Áurea Bahia; os amigos que deixaria, a casa que guardava as primeiras lembranças de sua vida, as aventuras que lá viveu, tudo o angustiava. O motivo pelo qual estavam deixando sua cidade, o angustiava mais ainda, pois a família passava por muitos transtornos financeiros. O autor refere-se a seu pai com muito orgulho por fazer parte da Polícia Militar e não se deixar levar por maldades cometidas por alguns de seus colegas, mas ao mesmo tempo relembra a característica machista de seu pai e da sociedade, quando sua mãe tinha que enfrentar os credores e ouvir insultos, porque seu pai e todos os outros homens tinham que defender a sua autoridade. Comenta sobre seus primeiros ensinamentos sobre democracia que tivera com seu tio João Monteiro, jornalista de oposição, aprendeu também com seu tio sobre o autoritarismo e desrespeito à coisa pública, que permanecem até hoje em nossa sociedade, que com o tempo parece se fortalecer cada vez mais. E com isso, Paulo Freire, através dos ensinamentos, dos exemplos que tivera e da realidade na qual viveu, aconselha que não devemos nos entregar e sim, cada vez mais depositar esperança no mundo. O autor tem grande admiração e gratidão por alguns educadores que passaram por sua vida e tiveram participação em sua formação, como aqueles que o ajudaram a chegar até o Colégio Osvaldo Cruz, onde Paulo Freire começou a lecionar Português, o autor sempre demonstrou interesse por tudo que se relacionava com as letras. Onde se aproximou mais das classes trabalhadores, na qual defendia e pela qual lutava, foi no SESI, comenta o autor que foi de grande valia para sua vida essa experiência. O autor fala sobre educação e democracia, comenta do educador progressista, das disputas de classe, do autoritarismo entre tantos assuntos potentes contidos na obra Cartas a Cristina.
Uma das características do autor, da qual já comentei, é submeter a prática a uma reflexão teórica, assim podemos fazer com a supervisão e os exemplos citados na obra. Uma concepção de Paulo Freire que gostaria de relacionar com a supervisão, é o autoritarismo. Como diz Paulo Freire, “o passado se compreende, não se muda” (p. 19), há muito tempo a supervisão vem sendo taxada de autoritária, na obra em vários exemplos da vida de Paulo, temos a idéia da supervisão como autoritária vista de fora, na vida de Paulo seu pai e sua mãe foram seus supervisores, dentro de sua família, seus pais sempre o estimularam a questionar, sempre estiveram unidos e unindo a família até mesmo nas dificuldades, mas visto pelos outros, seu pai era o típico homem de família autoritário, como no exemplo dos credores. Assim como a supervisão escolar, que tenta juntar as partes envolvidas no contexto escolar e tenta fazer parte deste contexto, mesmo sendo vista como autoritária. Dentro de cada classe existem os “bons e ruins”, como dizia o autor “Há tanta possibilidade de haver homens e mulheres corruptos no congresso quanto de haver decentes” (p.20), assim como na supervisão escolar que encontramos nas escolas aqueles engajados na realidade educacional e outros não tanto ou quase nada. Outro exemplo na obra e a mais marcante de minha leitura foi sobre o professor “Seu Armada”, marcante pela história e pela atitude de Paulo Freire. Seu Armada era um professor, que tinha sua escola particular em uma sala de sua casa, o autor já criticava o ambiente no qual as crianças estudavam, os alunos eram amedrontados pelo professor, por causa de seus métodos de ensino violentos e autoritários, também aqui o autor alimenta um sentimento de vingança contra o professor, desejando que os mesmos métodos que usa com os alunos fossem usados com ele e que sua escola fosse fechada e não pudesse abrir nenhuma outra. O autor tem uma visão crítica desde menino, por isso como educador contribuiu com a criação do movimento chamado Pedagogia Crítica. Se na época de Seu Armada, o papel do supervisor-educador tivesse sido trabalhado, hoje quem sabe não existiriam tantos dos “Seus Armadas” por nossas escolas. Se desde lá, tivéssemos pensado teoricamente a prática para praticar melhor, a democracia não estaria sendo usada como é hoje, o educador não estaria tão desgastado como hoje, pois o processo de (trans)formação é responsabilidade de todos, não apenas da supervisão. O que acontece que mudamos as palavras, mas os conceitos continuam, como é o caso da supervisão, durante anos debatemos o significado de supervisão, mudamos para várias palavras até chegar a esta, só que o que aconteceu é que a prática nós nunca mudamos, ou como pensamos a prática. Por isso, Seu Armada ainda vive dentro da sala de aula, dentro da supervisão, dentro da escola. Assim, a concepção de autoritarismo é relacionada a supervisão e aos exemplos citados por Paulo, quando o supervisor se achar educador no seu todo, ser político, ser social, ser pedagógico, os “Seus Armadas” desaparecerão.
As experiências de vida que Paulo Freire nos contou com sua obra, não foi tão fácil, mas foi mais fácil do que a de alguns, não posso concluir minha escrita, sem falar de como as coisas eram mais fáceis na época de infância de Paulo, era mais fácil conseguir um emprego, era mais fácil, pois tendo capacitação as oportunidades apareciam, hoje precisamos de muito mais que um curso superior para conseguir o emprego desejado. Na obra o autor escreve que seus filhos e netas verão e viveram tempos menos malvados e perversos do que ele, não enxergo por esse lado, hoje a fome é maior, as distâncias entre as classes são maiores, o que vemos hoje não é nada parecido com democracia. Constatei através desta leitura, diferenças tão grandes entre a história de Paulo Freire e a realidade de hoje, mas também problemas tão iguais, que depois de anos não mudaram. Foi uma grande experiência essa leitura, assim pude aproximar minhas idéias, não trocar, com o autor, apesar de nossa visão política ser diferente, acredito que as sociedades devem dialogar e não se confrontar, assim deve ser em relação a supervisão.


REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis; direção, organização e notas Ana Maria Araújo Freire. 2. ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

Luciana Camargo Bertinetti, formada em Pedagogia, com habilitação nas matérias pedagógicas e séries iniciais, pós-graduanda em Supervisão e Orientação Educacional pela FACOS/2009.
Resenha desenvolvida na disciplina Aspectos Sócio-filosóficos da Educação Contemporânea. Professora: Msc Rosane Oliveira Duarte Zimmer

sábado, 4 de julho de 2009

QUE TEMPO É ESSE?





Angela Perego, Claire Stuani, Elizabel Pasquali, Flavia Dalabeta, Gissely Lovatto Vailatti, Luiza Dani Chinato, Silvia Letícia Rijo Alves, Vânia Dani, Vivian Fontana de Andrade*



A diferença entre eu e nós, não é, ou é que, eu sei, que você sabe, que ele sabe que o outro sabe que saber, fazer, ter são diferentes de nós, e sim algo simples...
Simples seria o homem, se o homem seguisse seu estatuto, sem se incomodar, sem deixar a sua satisfação, deixar sua vida passar...
Passar o dia sem pensar, pensar...
Mas sua vida, no seu dia, no seu passado e, quem sabe, mas sem compromisso, pensar no futuro, sendo talvez o futuro a culpa de tudo...
Tudo passa despercebido quando pensamos no futuro; deixarmos de pensar, sentir, agir, nos tornamos processadores irracionais com finalidade de execução. Passamos etapas importantes de nossas vidas, onde o que é agora passa a ser passado e do passado esperamos o futuro, mas e o presente?
O presente deixou de ser ágora de antigamente para tornar-se uma utopia de eu sei, mas não devia.
Não devia o mundo ser tão capitalista, não devia ser tão egoísta, não devia ser tão acomodado, não devia haver fronteiras do mundo e do saber.
Saber entender o próximo, saber respeitar, aceitar e valorizar os outros, pois eu, tu, ele, nós, vós e eles agimos de formas diferentes, pois diferente é a nossa razão, habilidade em entender que nossas diferenças são a base do entendimento entre vós e todos.
Pois entender não é o mesmo de saber, pois posso saber muitas coisas e entender muito pouco, onde na outrora eu entendia muito e sabia pouco, pois se sei digo que sei, se entendo digo como sei fazer.
Contudo o combustível, o alimento, a semente, a força de entender e o saber é a curiosidade.
Sem curiosidade nada existe,
sem curiosidade eu não penso
sem curiosidade nós não criamos,
sem curiosidade tu não entende.
Assim se desenvolve o homem, através da curiosidade, todos aprendem que...o fogo queima, o chão é duro, que a água é fria, a mastigar devagar, a não correr, a ter cuidado na escada e que cair dói.
Mas deve aprender muito mais, pois isso é só o inicio. A ferramenta certa você tem, contudo deve aperfeiçoá-la, com novas curiosidades mais complexas.
Complexa é a vida, que se fosse possível fazer um relatório de cada dia vivido saberíamos que todos os dias nós aprendemos, com nossas curiosidades, e com nossas vivências do cotidiano.
Cotidiano descrito no passado por alguns em seus diários, com seus relatórios ou simplesmente cantando para o mundo, pois tal mundo pode ser do tamanho da sua curiosidade, do teu conhecimento, conhecimento agregado dia-a-dia e apreciado com o passar do tempo, onde a sabedoria ultrapassa a inteligência no quesito tempo, tempo que deve ser relatado a todos para que não se perca no tempo.


Pós-graduandas do curso Lato Sensu em Gestão Escolar: Administração e Supervisão pela FACULDADE DA SERRA GAÚCHA/FLORES DA CUNHA - 2009
Disciplina: Concepções Teóricas e Práticas da Gestão I e II
Professora: Msc. Rosane Oliveira Duarte Zimmer
Relatório de Ágoras 1 e 2 (dias 19 e 20/06/09)

segunda-feira, 29 de junho de 2009

RESENHANDO "MEDO E OUSADIA" II



Medo e ousadia: o cotidiano do professor
Pricila Rocha dos Santos

A realidade da escola atual vem, ano após ano, desafiando educadores e especialistas da área de educação. Buscam-se constantemente respostas para sanar problemas referentes à desmotivação de nossos educandos frente ao formato nos quais as aulas são ministradas. Cada vez mais, nos convencemos que nossa prática já não dá conta de atender a demanda de educandos que encontramos nos bancos escolares. A escola continua elitista, excludente e, principalmente, peca em não permitir que o educando exponha suas opiniões e desenvolva seu senso crítico. Por este motivo é fundamental que busquemos teorizar a prática pedagógica, procurando constantemente por questionamento que nos levem a refletir e encontrar alternativas para transformar a realidade educacional em que estamos inseridos.
Diante desta busca, temos claro o papel representado pelo educador Paulo Freire no desenvolvimento de estudos, reflexões, teorizações e construção de métodos que contribuíram decisivamente na transformação da educação. Autor de vários livros na área, Paulo Freire tornou-se reconhecido ao apresentar métodos inovadores na alfabetização de jovens e adultos, defendendo a educação popular e o acesso das classes trabalhadoras ao conhecimento, partindo de uma linguagem acessível e baseada na realidade dos educandos. Suas primeiras experiências educacionais foram realizadas em 1962 em Angicos, no Rio Grande do Norte, onde 300 trabalhadores rurais se alfabetizaram em 45 dias. Após este destaque, recebeu reconhecimento nacional fazendo parte do Ministério da Educação no governo João Goulart.Porém, logo depois, durante a Ditadura Militar, foi preso e exilado. Seu tempo de exílio em outros países, fez com que seu trabalho se tornasse conhecido e reconhecido internacionalmente, principalmente na América Latina e África. Com a volta ao Brasil, assumiu uma postura progressiva ao defender o caráter político da educação e a escola como um espaço para o desenvolvimento dialógico e crítico dos educandos tornando-os politizados e atuantes na sociedade.
Como seguidor do pensamento pedagógico defendido por Paulo Freire, podemos citar o educador estadunidense Ira Shor, responsável por implementar as metodologias criadas por Freire no contexto educacional dos Estados Unidos.
Freire e Shor escreveram juntos o livro Medo e Ousadia: o cotidiano do professor, onde estabeleciam um diálogo constante entre suas experiências, ideologias e reflexões acerca da aplicabilidade de uma educação libertadora, dialógica e crítica nas escolas. O livro destaca-se por apresentar experiências concretas dos autores, mescladas com análises reflexivas sobre estas práticas. Tanto Freire quanto Shor confrontam suas primeiras experiências como educadores e as construções realizadas com o decorrer das práticas docentes.
Ao analisar as transformações da educação atual, os autores preocupam-se em analisar criticamente o papel político exercido pela escola e pelas classes responsáveis pela manutenção do status quo. A partir da década de 60 iniciava-se um movimento pela popularização da educação, onde as massas passaram a ter acesso às escolas. Porém, que escola era esta? Qual educação seria eficaz para essa nova realidade? Quais interesses moviam esse estado? Como manter a ordem? Diante desta nova realidade surgiu uma nova forma de ensinar. A ideologia progressiva libertadora nascia como forma de qualificar a educação e preparar os educandos a partir de seu conhecimento. É uma característica da educação progressiva e dos métodos de Freire partir do conhecimento do educando. Para Shor
É importante aprender através da realidade, porém mais do que ‘ir até a realidade’, você aceitou (Freire) seus alunos como professores seus. Isso acrescenta profundidade ao conhecimento pela experiência, que é uma idéia comum na educação progressiva. (p.42)

Para tal, defendia-se a inserção do estudante como protagonista do próprio aprendizado permitindo-se discussões, reflexões e análises a partir de temas acerca da realidade de cada um. Desta forma, o diálogo tornaria o educando agente de seu conhecimento e ativo na sociedade. Para Freire, “o professor libertador não está fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes”. É papel do educador, portanto, tornar-se um mediador em sala de aula e não um mero transmissor de informações. Contudo, esta é uma realidade ainda em voga na nossa educação. É comum vermos falas de professores, e aqui os reitero como professores, totalmente explicativos, detentores do saber e que possuem um status de superioridade diante da classe, do mesmo modo que supervisores protagonistas de um modelo de liderança inibidora da feiúra compartilhada. Porém, a educação libertadora defende o aprendizado recíproco entre os estudantes e seus educadores, assim como os supervisores, onde estes aprendem enquanto ensinam e ensinam enquanto aprendem.
Todavia, tornar o educando protagonista de seu próprio conhecimento, implica em torná-lo crítico e consciente da organização social elitista em que está inserido. Ou seja, torná-lo iluminado é torná-lo político, torná-lo capaz de refletir, criticar e reivindicar pelos direitos que, enquanto ser humano, todos possuem. Por isso, Freire define a educação como política. Segundo ele, “a educação é política e a política tem educabilidade” (p.77).
Para Freire, a educação é política segundo dois pontos de vista bem abrangentes. Em primeiro lugar a escola é um espaço onde os estudantes são instigados, levados a pensar, criticar e refletir assuntos diversos que os envolvem e que são determinantes em suas condições de vida. Assim, o estudante torna-se politizado e capaz de reivindicar por seus direitos. Desta forma, a escola passa a ser um local gerador de política, onde o educador e supervisor precisam assumir um papel de dualidade em alguns momentos. Segundo Freire “no momento libertador, devemos tentar convencer os educandos e, por outro lado, devemos respeitá-los e não lhes impor idéias”. O educador só é iluminador no sentido de dar espaços e subsídios para que o estudante possa tirar suas conclusões. A tradicionalidade implica em suprimir o espaço do educando em prol de conteúdos pré-estabelecidos. Para Freire, “os currículos são padronizados e limitam o professor” (p.95). Acrescenta, ainda, que os currículos são “à prova de professores”, no sentido de que procuram impedir que o educador construa a educação com liberdade. A educação libertadora, por outro lado cria a liberdade para que o educando construa seu senso crítico. E, para tornar-se crítico o estudante precisa ser educado, no sentido de que perceba que tem voz e liberdade de expressar-se. A liberdade precisa ser apresentada aos estudantes e é papel do educador fazer isso, logo também do supervisor.
Em segundo lugar, a escola é política no sentido de que representa interesses inerentes da elite e do poder. É disseminadora de idéias específicas de uma classe determinante, formadora de opinião e mantenedora do status quo. De acordo com Freire, a educação é limitada enquanto transformadora da política social, afinal “não é a educação que modela a sociedade, mas ao contrário, a sociedade é que modela a educação segundo os interesses dos que detêm o poder” (p.49). Freire diz ainda que “para que a educação fosse o instrumento da transformação seria necessário que a classe dominante no poder se suicidasse!” (p.50).
A escola é um espaço capaz de criar e difundir opiniões e crenças. Foi organizada de tal forma que seus freqüentadores acreditassem que esta ordem é a mais correta e justa. E, a possibilidade de estender a educação para as massas implica em manipular suas formas de pensar e agir para a manutenção do status quo, pois levar a massa a pensar sua realidade seria deixá-los perceber que estão sendo explorados. O educador e o supervisor precisam estar preparados para, em muitos momentos, nadar contra a corrente (FREIRE, p.50). Afinal, estamos constantemente desafiando a ordem ao possibilitar que os educandos cheguem às próprias conclusões dentro do espaço escolar. Então, passa a ser uma tarefa difícil convencer os educadores e do mesmo modo, os supervisores de que devem enfrentar o sistema para aderir a educação libertadora correndo o risco de serem punidos no seu ambiente de trabalho.
É comum vermos nas escolas supervisores e educadores que assumem uma postura libertadora e dialógica serem criticados pelos demais, definindo que suas aulas são bagunçadas, não possuem seriedade, rigor e são ainda desqualificadas por não prepararem o educando. O educador, o professor tradicional, assim como o supervisor definem que todas as coisas que existem são boas e devem ficar como estão, pois os que fracassam são culpados pelos seu próprio fracasso. Para Freire, o medo de que isso aconteça é normal e faz parte do ser humano. Não podemos aceitar apenas que este medo nos imobilize. Neste ponto, Shor define que deve haver o enfrentamento dos medos de repulsa dentro do ambiente escolar através da luta para transpor limites. Afinal, Freire e Shor dialogam no sentido de que
Paulo: Os professores têm de tornar-se cada vez mais militantes! Devem tornar-se militantes, no sentindo político dessa palavra. Algo mais do que um ativista. Um militante é um ativista crítico. [...]
Ira. O militante, o ativista crítico, no ensino ou em qualquer outro lugar, examina até mesmo sua própria prática, não se aceitando como pronto e acabado, reinventando-se à medida que reinventa a sociedade. (p.65)

E neste sentido, que a escola deve trabalhar em conjunto, envolvendo todos os seus profissionais, para possibilitar que a postura dialógica se concretize e seja aceita dentro do ambiente escolar. Sendo assim, também cabe ao supervisor propiciar este ambiente de liberdade para que os educadores possam desenvolver técnicas e métodos dialógicos sem medo da punição. Neste caso, o supervisor é mais um ativista crítico, alguém que necessita estar ao lado do educador para auxiliar na transformação ideológica e política da escola.
O trabalho é conjunto. Educador, educandos, supervisor e outros especialistas da escola necessitam estar unidos para programar uma política que possibilite ao educando desenvolver o senso crítico e tornar-se político e ativista também. Freire (p.76) coloca a importância de trabalharmos em grupo fazendo um mapa ideológico da instituição, ou seja, nos aproximando daqueles que podemos ou não contar e sabendo contra quem lutar. O supervisor pode aparecer como um suporte neste mapa ideológico, alguém que não deve suprimir a liberdade e o diálogo das aulas através de suas atividades burocratizadas e do medo de punição ao transpor limites dentro da política escolar. O supervisor necessita fazer o mapa ideológico e perceber aqueles que podem desenvolver o trabalho ao seu lado. Quando o supervisor ampara seus educadores está amparado por eles, pois existe possibilidade maior de enfrentar o status quo e implementar a educação libertadora em sala de aula.
Sendo assim, a obra “Medo e Ousadia: o cotidiano do professor” nos ajuda a construir a ideologia política educacional para superarmos os medos impostos pela política vigente na educação atual. Através dele, construímos conceitos e relacionamos as experiências concretas do nosso cotidiano, tirando conclusões sobre o papel que educadores, supervisão e educandos podem, unidos, assumir dentro do ambiente escolar. Fica claro que o trabalho em conjunto é que nos dá suporte para enfrentarmos o status quo e adotarmos uma postura libertadora. Damos-nos assim suporte mútuo para apresentar os resultados que a libertação é capaz de trazer.
A obra nos dá, portanto, a certeza de que podemos ultrapassar os nossos medos, as burocratizações impostas pelo sistema e nos tornarmos verdadeiros ativistas, abrindo a escola para um novo olhar sobre o papel da educação e de seus profissionais na construção de um modo mais justo e politizado.


FACULDADE CENECISTA DE OSÓRIO
Pós-graduação Lato Sensu
Curso de Supervisão e Orientação Educacional
Disciplina: Aspectos Sócio-filosóficos da Educação Contemporânea
Professora: Msc Rosane Oliveira Duarte Zimmer

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Trad.: Adriana Lopes. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

domingo, 28 de junho de 2009

RESENHANDO "MEDO E OUSADIA"


Mariana de Andrade Doninelli*


EDUCAÇÃO LIBERTADORA E TRANSFORMAÇÃO DO PROFESSOR E DO SUPERVISOR EDUCACIONAL

O livro “Medo e Ousadia” (2008/ 12ª ed.) de autoria dos educadores Paulo Freire e Ira Shor aborda, em forma de diálogo, aspectos da Educação Libertadora. Como o texto se dá através de uma conversa entre o educador americano e o educador brasileiro, o texto se mostra acessível, de fácil entendimento, tornando-se mais prazeroso para o público leitor. Dentre os vários aspectos abordados sobre o tema EDUCAÇÃO LIBERTADORA na obra em questão, pretende-se destacar, nesta resenha, a questão da transformação do professor e, a seguir, o supervisor também como um educador libertador.

O primeiro questionamento que o professor deve se fazer, ao objetivar uma transformação voltada a uma prática libertadora é “Que tipo de ensino poderia provocar um conhecimento crítico?”. É tarefa primordial de o educador libertador abrir espaço de diálogo-discussão acerca dos temas da realidade, em relação à sociedade em que se vive, para que possa contribuir na formação crítica de seus alunos, no sentido de que esses possam passar a questionar aspectos como autoritarismo, ideologias, relações entre classes sociais e poder... Não existe liberdade sem abertura para diálogos democráticos que questionem fatores tais como uma sociedade dividida segundo raça, sexo e classe social; opressor e oprimido; e assim por diante.

Segundo Shor (p. 34), ao relatar experiência própria, a busca pela abertura de espaço para o diálogo e discussão crítica deve partir da realidade do próprio educando:

Criei condições em classe para que as pessoas pudessem falar de suas próprias vidas. Os que atendiam a esse convite revelavam as áreas de problemas que mais lhes interessavam. Eu questionava suas afirmações, propunha problemas críticos e tentava me educar a respeito do que significavam aquelas falas, como janelas abertas para a consciência de massa e caminhos que apontavam para a transformação.[...] Se (os alunos) percebem o entusiasmo do professor quando este lida com seus próprios momentos de vida, podem descobrir um interesse subjetivo na aprendizagem crítica.


O professor que está buscando transformar e seguir sua prática dentro da linha libertadora deve ter em mente que os alunos estão acostumados a uma educação autoritária, que lhes exigiu um comportamento meramente receptivo (não participativo) e passivo. Por isso, eles podem se mostrar inicialmente resistentes à sala de aula libertadora, a qual exige troca, pensamento crítico e ação participativa. É igualmente importante que o educador que busca a transformação de sua prática em libertadora saiba que não pode impor essa prática aos alunos, pois isso iria contra a ideologia da Pedagogia Libertadora, uma vez que a imposição de idéias está na base da educação tradicional, enraizada nos padrões do ensino-transferência. Na prática libertadora, pelo contrário, não se pretende impor, mas sim compartilhar idéias e abrir espaço de discussão crítica a cerca delas: “No momento libertador, devemos tentar convencer os educandos e, por outro lado, devemos respeitá-los e não lhes impor idéias.” ( FREIRE, p. 46). Segundo Ira Shor (p. 37), se o apelo libertador for rejeitado pelo grupo e o educador precisar retroceder aos padrões do ensino-transferência, isso não constitui motivo para desanimar ou desistir:

Se um curso não transcendia a pedagogia da transferência de conhecimento, isso não me fazia sentir fracassado. Apenas concluía que aquela situação não podia ser utilizada para a transformação. Os seres humanos envolvidos no processo não podiam iniciar a transformação naquele momento, naquele lugar e através daqueles meios.


Ainda segundo os autores, a ideologia tradicional é tão poderosa que é natural que os jovens professores precisem de experiências de sucesso para sentir que estão certos ao buscar a transformação de sua prática em uma prática libertadora, mas pode ser que estes êxitos não cheguem no primeiro ano. Nestes momentos, é preciso lembrar que a transformação libertadora ainda é possível e está potencialmente disponível algumas vezes, mas, nem sempre é possível alcançá-la pelos mesmos meios, pois não pode ser algo padronizado. De acordo com os autores (p. 38), “É a ação criativa, situada, experimental, que cria as condições para a transformação, testando os meios de transformação.” Neste sentido, penso que é necessário que o professor tenha em mente que é preciso experimentar e ousar, pois não há educação libertadora sem que o próprio professor tenha oportunidades de por em prática experiências pedagógicas.

Outro aspecto importante da educação libertadora é que ela, ao ser baseada no diálogo crítico e na troca de idéias e experiências, não é centrada no professor ou no aluno, pois vê ambos com equivalente importância no processo, visto que tanto o professor quanto o aluno te m o que ensinar e o que aprender nos momentos em que se estabelecem os diálogos críticos da Pedagogia Libertadora. Desta maneira, o ensino libertador se mostra mais democrático do que o ensino tradicional, em que o professor é o único detentor do saber e o aluno, por sua vez, é considerado um mero receptor desse conhecimento, que em nada pode contribuir na construção do mesmo. Se pensarmos a educação autoritária-tradicional sob este aspecto, é impensável sua existência nas salas de aula da atualidade, pois é sabido que nada se aprende ou se constrói sem o envolvimento direto do aluno. A aprendizagem só se dá quando esse aluno se torna sujeito da construção do conhecimento ao ser participativo e crítico em relação às questões abordadas em aula e às questões que se fazem presentes na sociedade em que vive. Nas palavras de Freire (p. 46):

A educação libertadora é, fundamentalmente, uma situação na qual tanto os professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes. Este é, para mim, o primeiro teste da educação libertadora: que tanto os professores como os alunos sejam agentes críticos do ato de conhecer.


Um aspecto importantíssimo da educação libertadora é que ela visa uma transformação além da sala de aula, ou seja, a Pedagogia Libertadora visa levar ao empreendimento de ações que venham a refletir em uma mudança da sociedade. O educador que quer transformar a sua prática mediante essa perspectiva (abordagem libertadora) não pode ser ingênuo e precisa saber que a educação é política. Segundo Freire (p. 60):

Esta é uma grande descoberta: a educação é política! Depois de descobrir que também é um político, o professor tem que se perguntar: Que tipo de política estou fazendo em classe? Ou seja: Estou sendo um professor a favor de quem? Ao se perguntar a favor de quem está educando, o professor também deve perguntar-se contra quem está educando. Claro que o professor que se pergunta a favor de quem e contra quem está educando também deve estar ensinando a favor e contra alguma coisa. Essa “coisa” é o projeto político, o perfil político da sociedade, o “sonho” político. Depois desse momento, o educador tem que fazer sua opção, aprofundar-se na política e na pedagogia de oposição.


O professor libertador busca o fim da passividade e o desenvolvimento da percepção crítica em favor da mudança social. Estas são ações que na escola, por si só, não são suficientes para transpor o sistema da realidade social. Entretanto, são pequenos fatores que podem vir a contribuir de forma significativa para a transformação além da sala de aula. Ao contestar a educação tradicional, estamos contestando a reprodução da ideologia dominante, e esse é um pequeno passo em direção à transformação. É um passo pequeno se considerarmos todo o sistema social que aí está, porém, é um primeiro passo que pode vir a impulsionar uma corrida em direção à transformação social!

Para finalizar as considerações acerca da transformação do professor em educador libertador, é importante ressaltar que este deve examinar constantemente a sua prática de forma crítica, reinventando-a sempre que for necessário.

No que diz respeito ao papel da Supervisão Escolar no contexto da Pedagogia Libertadora, é importante ressaltar que não há ação isolada por parte desta que possa transformar a realidade. Por outro lado, a Supervisão poderia mobilizar o grupo que, em primeiro lugar, deveria observar a realidade na qual está inserido. Em segundo lugar, após essa observação por parte do grupo, o Serviço de Supervisão Escolar poderia oportunizar espaço de estudo e discussão acerca da Pedagogia Libertadora, analisando suas contribuições e possibilidades mediante a realidade da Instituição em questão e da sociedade em que está inserida. Somente após toda esta análise, o grupo, em conjunto, poderia decidir porque essa pedagogia deveria se adotada e como promover um trabalho que venha a contribuir de forma eficaz para que se dê uma real transformação. Desta forma, não vejo como papel da Supervisão a tarefa de “mudar / salvar o mundo” (ou toda a realidade de uma Instituição Educacional), mas sim a tarefa da abertura de espaços de discussões que venham a contribuir para a proposição de ações pré-acordadas (no grupo) que levem a uma mudança positiva. Assim, o supervisor, enquanto educador libertador necessita promover o diálogo crítico e apostar no compartilhamento de idéias e no aprendizado que se dão através da troca e que podem, efetivamente, contribuir para uma educação transformadora.

REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia- O Cotidiano do Professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra.12 ed. 2008.

* PÓS-GRADUANDA PELA FACULDADE CENECISTA DE OSÓRIO – FACOS
ESPECIALIZAÇÃO EM SUPERVISÃO E ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL

Disciplina: Aspectos Sócio-Filosóficos da Educação Contemporânea
Profª Rosane O. D. Zimmer

FORMAÇÕES DA RESENHADORA:
CURSO NORMAL DE NÍVEL MÉDIO; CURSO SUPERIOR DE LETRAS- HABILITAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA; ESPECIALIZAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO E SUPERVISÃO ESCOLAR; ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA INSTITUCIONAL
ATUAÇÕES:
PROFESSORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUPERVISORA ESCOLAR DO MUNICÍPIO DE CAPÃO DA CANOA/RS



quinta-feira, 28 de maio de 2009

Paulo Freire em poesia*


Escolhi a sombra desta árvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. Por isto, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens. Suarei meu corpo que o Sol queimará; minhas mãos ficarão calejadas; meus pés aprenderão o mistério dos caminhos; meus ouvidos ouvirão mais; meus olhos verão o que antes não viam, enquanto esperarei por ti. Não te esperarei na pura espera porque meu tempo de espera é um tempo de que fazer. Desconfiarei daqueles que virão dizer-me em voz baixa e precavidos: é perigoso agir, é perigoso falar, é perigoso andar, é perigoso esperar, na forma em que esperas porque esses recusam a alegria de tua chegada. Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me com palavras fáceis, que já chegaste, porque esses, ao anunciar-te ingenuamente, antes te denunciam. Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera (FREIRE, 2000-b, p.5).
* Poesia escrita no exílio, em Gênova, em março de 1971, contida na obra Pedagogia da Indignação.

sábado, 16 de maio de 2009

Quis ser como outras mulheres

de Rosane O.D.Zimmer*

Dia desses quis mudar.
Quis ser como outras mulheres...
Mulheres que venho aprendendo a admirar.

Quis ser como outras mulheres, como Hipácia de Alexandria
para ser mulher inteligente, grande cientista.
Mulher de corpo e de mente poderosos.
Como Hipácia de Alexandria, queria ser filha educada por Theon para tornar-me um ser humano mais perfeito,
conhecer a geometria, astronomia, filosofia e matemática,
desenvolver estudos, inventar instrumentos,
resolver problemas.
Ser diretora da Academia.

Quis ser como Hipácia de Alexandria
para ser mulher inteligente, grande cientista. Mulher de corpo e de mente poderosos.
Hipácia morreu muito cedo. Em nome de Cirilo, o Doutor da Igreja, foi cruelmente torturada, esquartejada por conchas e cacos de cerâmica, foi queimada.
Mas não quis ser como algumas Mulheres de Atenas, do Chico,que vivem para seu maridos, que não choram, se ajoelham.
Nem com algumas de Bangladesh que recebem ácido no rosto como punição à rejeição de investidas sexuais, a casamentos arranjados.


Quis ser como outras mulheres, como Leila Diniz
para quebrar a cara da repressão, para escandalizar a sociedade hipócrita.
Mulher para chocar o Brasil maltratado pela política obscena.
Mulher jovem, uma musa, com corpo para transar de manhã, de tarde e de noite.
Como Leila Diniz, queria ser diva da esquerda radical, causar furor em entrevistas
e romper com os tabus da mudança, dizer palavrão,
estrelar Tem banana na banda.
Ser a grávida do ano no saudoso programa do Chacrinha, sem vergonha alguma.

Quis ser como Leila Diniz
para quebrar a cara da repressão, para escandalizar a sociedade hipócrita.
Mulher para chocar o Brasil maltratado pela política obscena.

Leila morreu muito cedo.
Foi invejada, criticada, malvista, foi vulgar para
homens e mulheres de sua época.
Adormeceu no vôo JAL471 com 27 anos, junto de diário.

Mas não quis ser como aquela menina Osama, na obra de Barmak, ninfeta que mente aos talibãs, sentenciada a viver ao lado de outras três esposas do velho Mulá.
Nem como algumas mulheres da Índia,
viúvas, incluídas no ritual de cremação dos maridos.
Como
Quis ser como outras mulheres, como Maria Bonita
para ser a primeira cangaceira, ser mulher de meu Lampião,
para viver na caatinga, na mata branca, para amar, acordar e fazer café.
Mulher bonita, baixa, cheinha, de cabelos e olhos escuros, de dentes bonitos.
Como Maria Bonita, queria ser sertaneja, brava, fiel ao meu bandoleiro errante e nascer mulher em dia de mulher.
Ser a María bonita, Maria del alma, de Caetano, para así entregarte toda mi vida.

Quis ser como outras mulheres, como Maria Bonita
para ser a primeira cangaceira, ser mulher de meu Lampião,
para viver na caatinga, na mata branca, para amar, acordar e fazer café.
Mulher bonita, baixa, cheinha, de cabelos e olhos escuros, de dentes bonitos.

Maria morreu muito cedo.
Viveu o primeiro casamento infeliz, fugia para a casa dos pais. Teve abortos, viveu oito anos à margem, revoltou-se com a miséria, com a exploração dos coronéis.
Foi degolada viva, em Angicos, pela polícia armada oficial.

Mas não quis ser como algumas chinesas que mesmo depois do infanticídio feminino seguem exploradas e desprezadas social e culturalmente.
Nem como algumas mulheres asiáticas ou africanas adúlteras,
apedrejadas, com pena de morte, como Safiya Hussaini e Amina Kurami

Quis ser outras tantas mulheres, como as
mulheres de muitas histórias do mundo.
Mulheres que não apenas nascem, mas se tornam, como dizia Beauvoir.

Quisera poder esquecer que essas mesmas mulheres sofreram e outras continuam a sofrer tantos males. Males originários da desigualdade, da discriminação. Vitimadas pela violência doméstica, pelo abuso sexual são agredidas, violadas na infância, na maturidade, na senilidade. Carentes em saúde reprodutiva, morrem. Morrem de miséria, morrem analfabetas, morrem em refúgios, morrem de aids, fome.
Lutam e mantém o legado por um mundo mais digno.
Quis ser como outras mulheres.

* In: BRAZIL; ZIEGER, L. Bruxas e fadas: poemas em flor. Porto Alegre: Editora Evangraf Ltda., 2007. p. 78-80

quinta-feira, 14 de maio de 2009

TEMPO *

de Rosane O.D.Zimmer

Qual o tempo que tem o tempo?
Tempo mágico,
Tempo infinito, tempo alargado
ou
Tempo de espera, tão vã...


Que tempo o tempo me concede, me reserva?
de um até hoje ou apenas, talvez, de um até amanhã?
ou mesmo, ainda, o tempo de um até breve?


Onde encontro o tempo?
Será em olhares com tantas marcas, com tantas vidas, com tantas mortes, com tanta história?
Será em fios que teimam aflorar cada vez mais alvos?
Será nos sorrisos, nos olhos ou nas mãos?


Por onde andará o tempo?
Escondido, acabrunhado, perdido
ou
Na espreita, no aguardo, chega de mansinho... sem que ninguém o perceba
Mas como que tomando conta, apodera-se de tudo e em êxtase, varre o mundo, apodera-se do mundo e, finalmente, comanda o mundo.


Quem é o tempo?
Mulher de cabelos longos, cajado na mão
ou
de mente sábia, boca vermelha, de coração florido?
Mulher amaldiçoada, venerada,
fértil, de seios fartos
que não aceitou deitar abaixo de Adão?

Preciso do tempo?
Para olhar no horizonte a lua que se alarga, a noite que chega
O dia que escorre
O sorriso teima em brilhar no espelho,
Quero o tempo, mais tempo, para pedir colo, para murmurar, para compreender como o universo faz a sua dança.

Tempo simbólico, de relação, cronológico... tão intenso, nefasto, necessário
Tempo de outros tempos.


* In: BRAZIL, A; ZIEGER, L; ZIMMER, R.O.D. Evas e Liliths em Poesia. Porto Alegre: C.R.V.A./Evangraf, 2005.





Mulher de cor, com cor, na cor de Rosane O.D.Zimmer*

Mulher de cor corre
Mulher com cor avança
Mulher na cor aguarda.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Mulher de cor berra
Mulher com cor chora
Mulher na cor murmura.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Mulher de cor é imoral
Mulher com cor é safardana
Mulher na cor é aquela.

Mulher de cor, com cor, na cor,
todas mulheres.

Qual é a cor daquela que é de cor, daquela com cor e daquela na cor?
Azul, verde, rosa-choque?
Quem são elas?
Que nomes possuem?
Como são os seus corpos?

Quem possui suas idéias, seus sonhos?
Quem é o dono da mulher de cor, da mulher com cor e da mulher na cor?

Mulher de cor, com cor, na cor, em quantas injustiças se depararam, em quantas vidas existiram, em quantas histórias foram contadas?

Mulher de cor, com cor, na cor,
Todas, simplesmente, mulheres.

* In: BRAZIL, A; ZIEGER, L.; ZIMMER, R.O.D. Evas e Liliths. Porto Alegre: C.R.V.A/Evangraf, 2005.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

E você? de Viviane Mosé

E você?

A palavra é uma roupa que a gente veste.
Uns gostam de palavras curtas.
Outros usam roupa em excesso.
Existem os que jogam palavra fora.
Pior são os que a usam em desalinho.
Alguns usam palavras caras.
Poucos ostentam palavras raras.
Tem quem nunca troca.
Tem quem usa a dos outros.
A maioria não sabe o que veste.
Alguns sabem e fingem que não.
E tem quem nunca usa a roupa certa pra ocasião.
Tem os que se ajeitam bem com poucas peças.
Outros se enrolam em um vocabulário de muitas.
Tem gente que estraga tudo o que usa.
E você, com quais palavras você se despe?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Paródia Roberto Carlos - Ensino tradicional

Além do Ensino Tradicional[1]
Composição: Angela Maria Iung Lavrati, Eliana Dalle Molle, Gisela Dalla Zen Feiten, Liciane V. Da Rosa, Patrícia S. da Silva, Paula B. Perotti e Scheila Duarte[2]
Além da Educação tradicional deve terAlgum lugar seguroPrá gestão reinventarOnde eu possa encontrarA democraciaTeoria e PráticaCom certeza...Lá nesse lugarO amanhecer é lindoCom qualidadeE a supervisão que vem vindo...Onde o educador podeCriar e recriarSer sujeito de sua práticaNa reorientação Curricular...Aproveitar a vidaReinventar a escolaSuperar o fracassoSem ter horaPra exclusão...Estudar o P.P.PEmancipatórioNum processo de construçãoNum trabalho coletivo...porque o aluno vem tudo isso existe láação e reflexãona prática educativaporque o aluno vem tudo isso tem valorde que vale o supervisorsem o professor

Além da conscientizaçãoExiste um lugar Ingênuo e CríticoPrá gente pensar...Lá Larálarálarálará LaláLá Larálaralarálará LaraláLá Laralaralarálará LaláLá Larálarálarálará Laralá...(2x)Se você não vem comigoTudo isso vai ficarNo horizonte esperando Pela Concepção Libertadora...
Se você não vem comigoNada disso tem valorSupervisor e Professor juntospela educação...Além do HorizonteExiste um caminhoParticipativo e coletivoPrá escola reinventar...Lá Larálarálarálará LaláLá Larálarálarálará LaraláLá Larálarálarálará LaláLá Larálarálarálará Laralá...(2x)
[1] Paródia á música de Roberto Carlos “Além do Horizonte”
[2] Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão Escolar: Administração e Supervisão- Faculdade da Serra Gaúcha
Disciplina: Concepções Teóricas e Práticas da Supervisão I e II
Professora: Msc. Rosane Oliveira Duarte Zimmer 2008 - Caxias do Sul/RS

Pós TURMA DE CAXIAS- estatuto da turma

FACULDADE DA SERRA GAÚCHA
Curso de Especialização Lato Sensu em Gestão Escolar: Administração e Supervisão
Disciplina: Concepções Teóricas e Práticas da Supervisão I e II
Professora: Msc. Rosane Oliveira Duarte Zimmer
Acadêmicas: Angela Maria Iung Lavrati, Debora Boff de Barros, Eliana Dalle Molle, Fabiana Bof Bizotto, Gisela Dalla Zen Feiten, Graciela D. R. Kuwer, Kátia Verona, Liciane V. Da Rosa, Márcia Oliveira Machado, Maria Inês Vergani, Patrícia S. da Silva, Paula Braz Perotti, Sheila Duarte, Simone Munaretto, Tânia M. C. dos R. Sitta, Vanessa Bressan



ESTATUTO DA TURMA produzido em outubro de 2008


Artigo I - Fica decretado que o papel do "supervisor educacional" é ensinar aprendendo, investigando e abrindo caminhos; aprender refletindo, teorizando, transformando a prática. (Debora)

Artigo II - Fica estabelecido que o supervisor precisa contribuir de forma significativa para com os movimentos educativos que pretendem a transformação e a reinvenção da escola, através das práticas, das reflexões e dos processos de ensinar e aprender. (Gisela)

Artigo III - Fica decretado que o supervisor não pode perder a esperança de uma educação melhor, pois quem não tem esperança deverá trabalhar noutro lugar, pois a escola existirá sem supervisores, mas supervisores escolares não existiram sem a escola e o fatalismo diante da realidade cede seu lugar a uma esperança crítica que move os homens para a transformação. (Gisela)

Artigo IV - Fica decretado que não é somente o Supervisor Educacional que “faz supervisão”, mas de que a ação supervisora ocorre em todos os níveis do sistema e por todos os educadores que nela atuam. (Gisela)

Artigo V - Fica estabelecido que a partir do momento que se muda a concepção de gestão democrática do ensino, através da qual todos, em conjunto, planejam, discutem, executam, avaliam, participando, sistematicamente, das ações educativas e do apoio à educação, todos passam a ser co-responsáveis, não restringindo a responsabilidade somente ao Supervisor Educacional. (Gisela)

Artigo VI - Fica decretado, a partir de hoje, que cada um tenha definido seu papel na escola, é necessário estabelecer claramente as atribuições e responsabilidades do Diretor de Escola, do Orientador Pedagógico, do Supervisor Educacional e dos demais profissionais que nela atuam. (Gisela)

Artigo VII –Fica decretado o constante aperfeiçoamento dos gestores, onde procurará recursos e a participação dos profissionais de suas escolas. (Patrícia)

Artigo VIII - Fica decretado que possamos harmonizar a cabeça e o coração para melhorar nossa prática como professores, supervisores, enfim todos educadores. (Kátia)

Artigo IX- Fica decretado que o supervisor educacional precisa acompanhar a elaboração e a execução do Projeto Político Pedagógico da Escola, a fim de propor ações que contribuam para a viabilização dos objetivos traçados. (Gisela)

Artigo X - Fica decretado que o ouvir, refletir, conversar e propor em conjunto seja nossa regra. (Kátia)

Artigo XI - Fica permitido ao supervisor educacional sonhar com práticas escolares, que venham a traduzir a emoção da própria aprendizagem. (Eliana)

Artigo XII - Fica permitido ao supervisor educacional unir razão e emoção, pois o processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade. (Eliana)

Artigo XIII - Fica decretado que a supervisão procurará inquietar a comunidade escolar para que os educandos percebam o mundo como algo que pode ser mudado, transformado e reinventado. (Márcia)

Artigo XIV - Fica estabelecido que o supervisor seja como um profissional que deve estar capacitado para uma escuta sensível, que criticamente informada, leve em conta as fantasias, angústias e defesas que acompanham qualquer processo de mudança. (Sheila)

Artigo XV - Fica decretado que a aprendizagem é um processo que deve ser estimulado e orientado; e não delimitado e desgastado. (Graciela)

Artigo XVI - Fica decretado que o supervisor instigará o professor a realizar a avaliação da sua prática pedagógica, juntamente com o educando, pois o educando é um sujeito dessa prática. (Vanessa)

Artigo XVII - Fica decretado que o educador juntamente com o gestor precisa ter coerência e respeito aos saberes dos educandos, colaborando assim na criação de possibilidades para a sua própria produção. (Tânia)

Artigo XVIII - Fica permitido acreditar na supervisão como um sonho viável que exige de nós pensar diariamente a nossa prática, exige de nós a descoberta; a descoberta constante dos limites da nossa própria prática; prática, que significa perceber e demarcar a existência do que chamamos de espaços livres a serem preenchidos. (Paula)

Artigo XIX - Fica permitido o supervisor se constituir num articulador do projeto pedagógico de uma coletividade e destacar a importância de uma formação que reelabore a relação teoria e prática em supervisão educacional. (Paula)

Artigo XX - Fica decretado que a função das(os) supervisores (as), além de auxiliar os educandos no exercício da supervisão também devem acreditar no sonho de que uma escola melhor é possível e façamos uso das palavras de Freire: “Ai de nós, educadores, se deixarmos de sonhar sonhos possíveis.” (Liciene)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA
de Viviane Mosé
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.Algumas palavras quando alvejadas ao soladquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.Existem outras, e a palavra amor é uma delas,que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.Agora nunca vi palavra tão suja como perda.Perda e morte na medida em que são alvejadassoltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molhoem um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.O perigo neste caso é misturar palavras que manchamno contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.Outro cuidado importante é não lavar demais as palavrassob o risco de perderem o sentido.A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.Muito importante na arte de lavar palavrasé saber reconhecer uma palavra limpa.Conviva com a palavra durante alguns dias.Deixe que se misture em seus gestos, que passeiepela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,prolifera em toda sua possibilidade.Se puder suportar essa convivência até não maisperceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.
Eu sei, mas não devia
de Marina Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

arquivo pessoal