domingo, 5 de julho de 2009

RESENHANDO “CARTAS À CRISTINA”

Luciana Camargo Bertinetti*

Dentre as duas opções de obras do educador Paulo Freire, escolhi Cartas a Cristina, pois me interessa conhecer a vida e a caminhada do autor. Sempre tive um pré-conceito em relação à escrita de Paulo Freire, com a leitura da obra busquei com um olhar mais aguçado conhecer o pensamento de vida de Paulo, sua visão política, educacional e social. Busquei com as Cartas a Cristina, pensar e repensar o papel do supervisor, através das experiências vividas e comentadas pelo autor, Paulo Freire.
A obra citada a cima, foi escrita por Paulo Freire (educador brasileiro defensor da educação popular, nascido no Recife em 1921 e veio a falecer em São Paulo em 1997), a partir de um pedido de sua sobrinha Cristina. Tio e sobrinha se correspondiam a muito tempo desde os anos 70, até então Cristina era apenas uma adolescente, quando começa seus estudos universitários surge daí a curiosidade de conhecer mais a fundo seu tio que pouco convivera com ela.
Até então, conhecia a pessoa do tio, através do testemunho de minha mãe, de meu pai, de minha avó. [...] Gostaria, de que você me fosse escrevendo cartas falando algo de sua vida mesma, de sua infância e, aos poucos, dizendo das idas e vindas em que você foi se tornando o educador que está sendo (p. 30).
A obra nos mostra as diferentes fases da vida de Paulo Freire, da infância de dificuldades até se tornar o educador otimista e humanitário em que se tornou. O autor relembra com saudades de sua infância, dos primeiros professores, das amizades, do tempo do exílio, das experiências profissionais, da convivência com sua mãe católica e seu pai espírita, de como as diferenças foram importantes para que acreditasse na necessidade de aproximar as diferentes classes sociais, as diferentes visões políticas, para que se criasse um diálogo entre as sociedades. Esta edição ainda traz notas formuladas pela segunda esposa do autor, Ana Maria Araújo Freire, o título da obra esta maior, as cartas têm títulos, dentre outras modificações, tornando a leitura mais clara e compreensível. Compreender o passado, o caminho trilhado pelo educador Paulo Freire, não seria possível sem a leitura das Cartas a Cristina.
As cartas a Cristina, vêm cheias de lembranças e emoções, quando Paulo Freire através destas lembra de sua infância e adolescência de fome, de como isso lhe foi importante, para que iniciasse um sentimento de esperança no mundo. Descreve que o homem no qual se tornou é diferente do menino que viveu a sua realidade dentro de sua família, de suas escolas, com seus amigos, mas um não poderia existir sem o outro. O amor no interior de sua família, fez com que lutassem a cada dia pelo problema que se instalara sem pedir licença, a fome. O autor se transporta muitas vezes à realidade de outras crianças com as quais conviveu já sendo educador, podemos exigir que estudem tal fórmula, se elas têm problemas maiores do que os vistos na matemática, que o cansaço, o desgaste que carregam consigo para a escola, é muito maior que uma simples preguiça de estudar e sim, as dificuldades enfrentadas por suas famílias, a falta de comida e até de moradia. Na época em que Paulo Freire estudava, quando menino, o simples decorar é sinal de inteligência e a dúvida que nos fica, é que se ainda não é hoje. Se desde a época do autor tivesse sido trabalhado o papel do supervisor-educador, quem sabe essa concepção de inteligência não existiria mais. Paulo Freire descreve o educador progressista como aquele que não diverge seu discurso de sua prática. O autor sempre traz a teoria ligada à prática, dando exemplos de acontecimentos de sua vida, como no episódio do furto do mamão do vizinho, como aprendemos mais fácil a fazer contas a partir de nossa realidade, do que mesmo dentro da escola com trabalhos programados, que não precisam de nossa história e nem de nossa cultura para serem realizados. Paulo Freire conheceu a dura realidade da vida muito cedo, se dividia entre o aventureiro menino e o trabalho necessário.
Como a imagem destorce a realidade, Paulo Freire trata com atenção de algo tão irrelevante para os demais, que se pensado como o fez nos diz muito mais do que parece. Fala da gravata de seu pai e do piano alemão de sua tia, como estes dois objetos foram importantes para manter a imagem da família de classe média que apenas passava por uma crise, na qual abalou grande parte da sociedade, a crise econômica de 1929. Isto o autor denomina de expressões de classes, estas expressões, o andar, o cumprimentar, fez com que sua família atravessasse a crise sem deixar de manter sua posição na sociedade. Acredita o autor, que graças ao piano e a gravata de seu pai (símbolos de classe) o vizinho jamais desconfiara de que ao lado estariam os envolvidos com o sumiço da galinha, que havia sido morta por Paulo e seus irmãos, para que tivessem um almoço de domingo, novamente transporta a teoria com um exemplo prático. Ainda escreve o autor, que aos oito anos, já buscava a razão de ser das coisas, através dos muitos ruídos que escutava no quintal de sua casa. Lá também neste quintal, aprendeu a escrever suas primeiras palavras com a ajuda de seu pai e de sua mãe, que nunca lhe negaram atenção, com eles Paulo aprendeu o sentido da palavra compreensão e diálogo. Aos seis anos Paulo Freire conheceu sua primeira professora, Eunice, convidado por ela assim, como em sua casa sempre a conhecer e não a decorar ou acumular conhecimentos. A educação que tivera quando menino tanto em casa como na escolinha particular de Eunice, o fez otimista e uma pessoa crítica, sempre buscando formas de ação compatíveis com sua opção política. Paulo Freire, apesar de ter sido estimulado a crescer, viveu em uma época em que certos assuntos lhe eram proibidos, o tema sexo e tudo que era ligado a ele não eram de comentados em público, assim Paulo foi sanando suas dúvidas e curiosidades com irmãos ou amigos mais velhos. E aqui tornamos a ver o quanto crítico foi a pessoa de Paulo Freire, desde moço indagava-se, como é possível ser motivado a questionar se em certos lugares da sociedade da qual viveu não poderia se manifestar sobre assuntos que afrontassem a moralidade de alguns, hoje ainda vemos isso, relacionado sempre ao mesmo tema gerador, sexo. O autor volta a falar no educador progressista, em relação ao tema sexo, fala sobre os exageros que podem causar em liberar demais as curiosidades, o educador progressista deve sempre estar atento, pois “resvalando para incoerências, sacrificamos o sonho estratégico” (p. 62). A experiência traumática com a mudança do Recife para Jaboatão e a insegurança com que estava por vir, marca esta carta. O que deixava pra traz, como a escola que freqüentava há apenas três meses e a querida professora, que marcou o processo de formação da pessoa Paulo, Áurea Bahia; os amigos que deixaria, a casa que guardava as primeiras lembranças de sua vida, as aventuras que lá viveu, tudo o angustiava. O motivo pelo qual estavam deixando sua cidade, o angustiava mais ainda, pois a família passava por muitos transtornos financeiros. O autor refere-se a seu pai com muito orgulho por fazer parte da Polícia Militar e não se deixar levar por maldades cometidas por alguns de seus colegas, mas ao mesmo tempo relembra a característica machista de seu pai e da sociedade, quando sua mãe tinha que enfrentar os credores e ouvir insultos, porque seu pai e todos os outros homens tinham que defender a sua autoridade. Comenta sobre seus primeiros ensinamentos sobre democracia que tivera com seu tio João Monteiro, jornalista de oposição, aprendeu também com seu tio sobre o autoritarismo e desrespeito à coisa pública, que permanecem até hoje em nossa sociedade, que com o tempo parece se fortalecer cada vez mais. E com isso, Paulo Freire, através dos ensinamentos, dos exemplos que tivera e da realidade na qual viveu, aconselha que não devemos nos entregar e sim, cada vez mais depositar esperança no mundo. O autor tem grande admiração e gratidão por alguns educadores que passaram por sua vida e tiveram participação em sua formação, como aqueles que o ajudaram a chegar até o Colégio Osvaldo Cruz, onde Paulo Freire começou a lecionar Português, o autor sempre demonstrou interesse por tudo que se relacionava com as letras. Onde se aproximou mais das classes trabalhadores, na qual defendia e pela qual lutava, foi no SESI, comenta o autor que foi de grande valia para sua vida essa experiência. O autor fala sobre educação e democracia, comenta do educador progressista, das disputas de classe, do autoritarismo entre tantos assuntos potentes contidos na obra Cartas a Cristina.
Uma das características do autor, da qual já comentei, é submeter a prática a uma reflexão teórica, assim podemos fazer com a supervisão e os exemplos citados na obra. Uma concepção de Paulo Freire que gostaria de relacionar com a supervisão, é o autoritarismo. Como diz Paulo Freire, “o passado se compreende, não se muda” (p. 19), há muito tempo a supervisão vem sendo taxada de autoritária, na obra em vários exemplos da vida de Paulo, temos a idéia da supervisão como autoritária vista de fora, na vida de Paulo seu pai e sua mãe foram seus supervisores, dentro de sua família, seus pais sempre o estimularam a questionar, sempre estiveram unidos e unindo a família até mesmo nas dificuldades, mas visto pelos outros, seu pai era o típico homem de família autoritário, como no exemplo dos credores. Assim como a supervisão escolar, que tenta juntar as partes envolvidas no contexto escolar e tenta fazer parte deste contexto, mesmo sendo vista como autoritária. Dentro de cada classe existem os “bons e ruins”, como dizia o autor “Há tanta possibilidade de haver homens e mulheres corruptos no congresso quanto de haver decentes” (p.20), assim como na supervisão escolar que encontramos nas escolas aqueles engajados na realidade educacional e outros não tanto ou quase nada. Outro exemplo na obra e a mais marcante de minha leitura foi sobre o professor “Seu Armada”, marcante pela história e pela atitude de Paulo Freire. Seu Armada era um professor, que tinha sua escola particular em uma sala de sua casa, o autor já criticava o ambiente no qual as crianças estudavam, os alunos eram amedrontados pelo professor, por causa de seus métodos de ensino violentos e autoritários, também aqui o autor alimenta um sentimento de vingança contra o professor, desejando que os mesmos métodos que usa com os alunos fossem usados com ele e que sua escola fosse fechada e não pudesse abrir nenhuma outra. O autor tem uma visão crítica desde menino, por isso como educador contribuiu com a criação do movimento chamado Pedagogia Crítica. Se na época de Seu Armada, o papel do supervisor-educador tivesse sido trabalhado, hoje quem sabe não existiriam tantos dos “Seus Armadas” por nossas escolas. Se desde lá, tivéssemos pensado teoricamente a prática para praticar melhor, a democracia não estaria sendo usada como é hoje, o educador não estaria tão desgastado como hoje, pois o processo de (trans)formação é responsabilidade de todos, não apenas da supervisão. O que acontece que mudamos as palavras, mas os conceitos continuam, como é o caso da supervisão, durante anos debatemos o significado de supervisão, mudamos para várias palavras até chegar a esta, só que o que aconteceu é que a prática nós nunca mudamos, ou como pensamos a prática. Por isso, Seu Armada ainda vive dentro da sala de aula, dentro da supervisão, dentro da escola. Assim, a concepção de autoritarismo é relacionada a supervisão e aos exemplos citados por Paulo, quando o supervisor se achar educador no seu todo, ser político, ser social, ser pedagógico, os “Seus Armadas” desaparecerão.
As experiências de vida que Paulo Freire nos contou com sua obra, não foi tão fácil, mas foi mais fácil do que a de alguns, não posso concluir minha escrita, sem falar de como as coisas eram mais fáceis na época de infância de Paulo, era mais fácil conseguir um emprego, era mais fácil, pois tendo capacitação as oportunidades apareciam, hoje precisamos de muito mais que um curso superior para conseguir o emprego desejado. Na obra o autor escreve que seus filhos e netas verão e viveram tempos menos malvados e perversos do que ele, não enxergo por esse lado, hoje a fome é maior, as distâncias entre as classes são maiores, o que vemos hoje não é nada parecido com democracia. Constatei através desta leitura, diferenças tão grandes entre a história de Paulo Freire e a realidade de hoje, mas também problemas tão iguais, que depois de anos não mudaram. Foi uma grande experiência essa leitura, assim pude aproximar minhas idéias, não trocar, com o autor, apesar de nossa visão política ser diferente, acredito que as sociedades devem dialogar e não se confrontar, assim deve ser em relação a supervisão.


REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis; direção, organização e notas Ana Maria Araújo Freire. 2. ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

Luciana Camargo Bertinetti, formada em Pedagogia, com habilitação nas matérias pedagógicas e séries iniciais, pós-graduanda em Supervisão e Orientação Educacional pela FACOS/2009.
Resenha desenvolvida na disciplina Aspectos Sócio-filosóficos da Educação Contemporânea. Professora: Msc Rosane Oliveira Duarte Zimmer

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