sábado, 29 de agosto de 2009

MEDO E OUSADIA ¹

por Josenice Panizzon ²

É impossível ensinar sem ousar. (Paulo Freire)



“O que é ensino libertador? O que é ensino dialógico? Como o professor se transforma em educador libertador? Como é que os estudantes iniciam seu processo em um método dialógico?” (FREIRE e SHOR, 1986, p.11). Essas e outras indagações relacionadas à educação libertadora é o que vamos encontrar na obra que nos propomos a resenhar.
De autoria de Paulo Freire e Ira Shor, o livro, em forma de diálogo, discute questões cotidianas pertinentes ao processo de ensino e aprendizagem ainda existentes em nosso atual contexto histórico. Analisa elementos que se constituem em desafios reais e concretos na perspectiva da reinvenção e recriação dos espaços escolares. Em suma, apresenta as dinâmicas, os medos, ousadias e as potencialidades dos diferentes sujeitos comprometidos com o processo pedagógico.
Paulo Freire, pedagogo, filósofo, escritor, “cidadão do mundo”, autor de várias publicações, de modo especial, o livro intitulado “Pedagogia do Oprimido”, cuja obra analisou e auxiliou enfaticamente a prática educativa hodierna, bem como sua significativa contribuição para a alfabetização de jovens e adultos, prática essa que o levou ao reconhecimento mundial como educador.
Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, em Recife, Pernambuco. Alfabetizou-se em sua própria casa, partindo de suas próprias palavras, de sua prática, de sua experiência. Foi exilado durante a ditadura militar brasileira, retornado ao país somente após a deposição desse mesmo sistema político.
Fazia da educação sua paixão. Vivia, vivenciava e “saboreava” a causa educativa. Morreu em 02 de maio de 1997, em São Paulo, esperançoso pelas mudanças sociais, cujo desfecho vinha ocorrendo sob variados aspectos, tais como “as marchas” das mulheres, o movimento dos sem terra, dos desabrigados, dos gays, etc. Sempre acreditou no ser humano, como agente de constante transformação, sendo contrário ao “determinismo histórico” e ao “fatalismo social”, próprios de nossa época. A importância de sua obra está em defender a educação como pressuposto norteador da transformação social, partindo da concepção e da construção de novas relações pedagógicas.
Ira Shor, educador norte-americano, estudioso e crítico dos rumos da reforma da educação em seu país. Esteve ligado na luta pela melhoria das condições de ensino, de modo especial, à classe trabalhadora americana e demais minorias sociais marginalizadas.
A obra é toda baseada no diálogo entre esses dois educadores. Sendo assim, torna-se indispensável para a elucidação dos problemas práticos e teóricos colocados pela pedagogia dialógica. É também referência no que diz respeito à riqueza de informações, construção de conceitos, análises e exemplificações acerca do “cotidiano do professor”.
A característica primordial deste texto está em se constituir em um livro falado. Freire (p.13) justifica, dizendo que “[...] é que o diálogo é, em si, criativo e re-criativo.” E Shor (p.13), por sua vez, ratifica, escrevendo, “[...] espero que encontremos um estilo dançante. Assim, seremos ao mesmo tempo poéticos, divertidos e profundos.”.
O livro divide-se em sete eixos norteadores que são todos especificados, elucidados e exemplificados no decorrer da leitura, estabelecendo-se continuamente ligações intrínsecas com a temática central “medo” e “ousadia”, possibilitando, dessa forma, uma leitura envolvente, dinâmica e extremamente informativa, conceituando e reconceituando os modelos educativos vigentes.
Cada capítulo trata de assuntos específicos, podendo até serem analisados de forma metódica, isolada e, paradoxalmente, as outras leituras e obras de Paulo Freire.
A primeira parte do livro aborda as possibilidades e saberes que um professor deve possuir para transformar-se em um educador libertador, enfatizando o modo, pelo qual à educação se relaciona com a mudança social. Já no segundo capítulo evidencia os “temores” e os “riscos” da transformação, os quais devem ser encarados sem medo, pois ele “imobiliza” e estagna os sujeitos “aprendentes”. Os autores defendem que não devemos negar o medo, mas cultivá-lo, pois “[...] o medo vem de seu sonho político, e negar o medo é negar os sonhos”. (p.70)
Logo no terceiro eixo do livro encontramos a estrutura e o rigor necessários à educação libertadora. As classes dialógicas tornam iguais professores e alunos? Podemos constatar a relevância desse tema quando Shor afirma que (p.98) “[...] a abordagem dialógica é muito seria, muito exigente, muito rigorosa e implica numa busca permanente de rigor [...]”. Nesse aspecto, os autores desvelam de forma nítida sua aversão e contrariedade à definição de “rigor” postulada como sinônimo de “autoritarismo”. Salientam ainda, a importância da superação do ensino conteudista, “bancário”, instrucionalista e descontextualizado que apenas serve de suporte ao capitalismo e a classe dominante.
Na seqüência, o diálogo que segue, trata da conceitualização do “método dialógico de ensino”, onde Freire (p.123) diz que “[...] nós seres humanos, sabemos que sabemos e sabemos também que não sabemos. Através do diálogo, refletindo juntos sobre o que sabemos e não sabemos, podemos a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade”. Introduzem ainda novos conceitos e dinâmicas para as práticas docentes, enfatizando o valor significativo do diálogo, da ação em conjunto com os discentes e da escuta no processo educativo como formas fecundas para chegarmos à liberdade, a cidadania e a transformação.
Ira Shor inicia o quinto capítulo, denunciando a “cultura do silêncio” americana definida por ele como sendo “[...] uma tolerância passiva à dominação” (p.149). E anunciando uma “democracia da libertação”, defendia também por Freire (p.162) ilustrada na frase seguinte:“ [...] mudar as condições concretas da realidade significa uma prática política extraordinária, que exige mobilização,organização do povo, programas [...]”,onde exista de fato a atuação, o protagonismo dos sujeitos envolvidos nesse processo.
Nas duas últimas partes do “livro falado” a centralidade do diálogo são educadores e educandos, inferindo principalmente na questão “como podem os educadores libertadores superar as diferenças de linguagem existentes entre eles e os alunos?” (p.171). Indagando também se “Temos o direito de mudar a consciência dos alunos?” (p.203). Em síntese, agrega os “medos” e “ousadias” da educação emancipadora, conversando sobre como iniciar a transformação docente, discente e essa em comunhão com aquela. Freire (p.203) destaca que “o educador libertador nunca pode manipular os alunos e tampouco abandoná-los à própria sorte. [...] assume um papel diretivo necessário para educar”. Neste sentido, os alunos poderão constituir-se como agentes é como cidadãos em um mundo “para todos”.
É imprescindível destacarmos algumas expressões e conceitos, elencados por Freire e Shor relevantes para a nossa reflexão enquanto educadores, e gestores do século XXI, tais como “fatalismo social”, a distinção entre “Laissez-faire, educador autoritário e educador libertador”, “a relação capitalismo-currículo-alienação”, “transferência x diálogo”, “construção x verbalização”, “medo-política-sonho”, a educação como um ato inerentemente “político”, “Pedagogia libertadora x Pedagogia bancária”, “a linguagem do povo/realidade”, “produção x reprodução”, “autoridade x autoritarismo”, “educação e economia”, etc.
Dos conceitos elencados acima, um vem merecendo destaque no atual cenário educativo brasileiro, é a relação “currículo - capitalismo-alienação”. Este aspecto é evidenciado comumente por nós educadores e gestores durante o processo educativo de nossas escolas, sendo essencial refletirmos sobre algumas questões: se o objetivo maior da educação é formar cidadãos livres e conscientes, como pode o currículo, base dessa formação, estar impregnado de ideologias capitalistas, onde apenas beneficiam alguns?Que função paradoxal é esta que o currículo assume?O que está subentendido naquele “rol de conteúdos pragmáticos?” Quem realmente “formamos”?Qual a visão de “homem” e “mundo” nesse contexto?
A obra “medo e ousadia” retrata profundamente essa questão, atribui-lhe significação e propõe soluções viáveis por meio da prática libertadora. O maior agravante, nesse caso, apesar de termos acesso a todas essas informações, é a lentidão e a compartimentalização do processo de mudança, isto é, ou nos preocupamos com a reprovação ou então com a evasão, ora nos indagamos sobre os conteúdos, ora sobre a falta de interesse dos nossos alunos, como se tudo isso não estivesse interligado, como se não fizesse parte do mesmo processo.
Assim, acredito que a grande ousadia para a próxima década é concebermos a educação sob um enfoque político de mudança e de integração, sendo o propósito holístico, uma possível conseqüência disso, onde as relações se conjugam, sendo nosso papel, principalmente como gestores, entender essas relações, adaptá-las à nossa realidade e efetivar a mudança tanto almejada por meio da retomada de conceitos sistemáticos e globais em termos de educação. Enquanto tentarmos executar melhorias apenas parciais, sempre haverá uma “válvula de escape” para os velhos problemas, os quais serão renomeados e até reconfigurados, porém seu alicerce estrutural não sofrerá modificações.
Em contrapartida, se objetivamos, de fato, transformar a educação, necessitamos exaltar expressões como “autoridade / liberdade”, “democratização da escola pública”, “formação permanente”, sendo estas responsáveis e co-autoras pela superação da educação “bancária” para a emancipação.
A curiosidade epistemológica e a certeza de nosso inacabamento (Freire, 1996), serão o suporte necessário para a construção em conjunto de soluções para a problemática que envolve a educação, bem como de estabelecer bases para as projeções futuras.
Neste sentido, é indiscutível a relevância da leitura desta obra freireana para todos os educadores e gestores, pois nas palavras de Ana Maria Saul, ao também prefaciar esta obra (1986, p.8), referindo-se a Freire, salienta que “[...] este trabalho poderá dirimir muitas das nossas percepções equivocadas sobre o seu pensamento no que diz respeito às possibilidades da educação libertadora no contexto escolar”. Ademais, a obra é uma raridade para todos que acreditam no papel da educação e do educador na transformação da sociedade.
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¹ Resenha da obra: FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: O Cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, 224 p. Este trabalho fez parte das atividades pertinentes à disciplina Concepções Teóricas e Práticas de Gestão I e II, do curso de Especialização Latu Sensu em Supervisão e Gestão Escolar, na Faculdade da Serra Gaúcha, ministrada pela professora Mª. Rosane Zimmer.
² Pedagoga, Especialista em deficiências Múltiplas e aluna do Curso de Pós-graduação em Supervisão e Gestão Escolar, julho 2009.

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